segunda-feira, junho 26, 2006

Último soneto, o fim deste Blog

Perseguia verduras infrutíferas e
Perdi-me em parcas possibilidades
Só encontro verdades das duras
Em meio a tantas boas-vontades

Dentre a multidão de pronomes
No calor dos números é que me fixo
Conto dedos que tenho em mente
Corto os medos desde o prefixo

Remediando o incurável
Parcelo as dívidas que me afogam
Pertenço ao tempo inapelável

Contenho ramos que não se podam
De jogos limpos que não se jogam
Placar perdido, irrecuperável.

domingo, junho 25, 2006

Um sonho meu
E se quando sonhássemos pudéssemos nos controlar nos sonhos? Deus nos deu o sonho para descansarmos da realidade cruel para onde o diabo nos enviou. Será que Deus seria bom o bastante para que nos controlássemos durante os sonhos, para que pudéssemos ter consciência de quando sonhamos. E o mais importante, será que, mesmo que chegássemos a acordar em um sonho, saber que estamos sonhando, saber que temos toda a liberdade que só o sonho nos proporciona, será que Deus foi legal o bastante para fazer as pessoas dos nossos sonhos agirem conforme nossas vontades? Ou mesmo dormindo seremos discriminados, torturados, levaremos um fora da atriz famosa, bateremos o carro se andarmos em alta velocidade, seremos surrados pelo cara mau da escola? Será que mesmo sonhando estaremos presos às leis que regem a realidade? Se sim, é melhor mesmo deixarmos como está. Acordados, façamos acontecer; dormindo, que tudo se resolva sem nosso esforço. Se sim, o presente não foi tão bom, o diabo ainda é mais eficiente.

sábado, junho 24, 2006

Daqueles versinhos nordestinos

Então foi que olhei Maria
Ela que nada sofria
Com dor deu-me sua mão.
Pensei no que que lia
Aquela com mão vazia
Um romance do sertão.

Não me fiz de rogado
Cabra bom é cabra armado
Ora pistola, ora facão
Disse Maria me coce o lado
Teu marido tá encrencado
Procurado aqui no sertão.

Bolas! Maria não me olhou
Sequer me desconversou
Achei que não me entendia
Entendedor é que não sou
Sua saia ela levantou
E de lá mostrou-me o guia

Do sertão como Maria
Fantasiado eu fugiria
Com ela de meu patrão
De saia me redimiria
Coisa tola coisa vazia
Pois saia não uso não

Saí que foi correndo
Ribanceira fui descendo
Chamando Zé e João
Os que me foram vendo
Seguir-me foram querendo
Maior exército do sertão.

O que não faz medo de mulher
Brigar comigo ninguém mais quer
Mais me respeitam que boi babão
Em brigas feias meto a colher
Maria é sábia, sábia mulher
Lendo romance de complicação

Maria é linda, eu amo ela
Maria é boba é uma cadela
Eu sou cachorro, sou puro cão
Farejo desde febre amarela
Até churrasco com chimarrão
Sou mais esqueleto que guela
Passar fome manda o sertão.

Quem se alimenta é Maria
Não larga o livro noite e dia
Mas me jogou na solidão
Quero varanda ou maresia
Quero amor, quero Maria
E um futuro pro meu sertão.

Hoje se me perguntam
Onde está a confusão
Olho Maria e sua calma
Miro olhos de confissão
Coisa confusa é minha alma
O que restou e o que que não.

sexta-feira, junho 23, 2006

Rompimento (música)

Roube, leve um pouco de mim
Deixe-me um pouco leve assim
Pouco a pouco me deixe pra mim
Solte-me, roubar é mau

Do alto da minha cama
Eu vi quem é que ama
Amei doce de banana
Faz parte do ritual

Do alto, abraço Ana
O beijo desencana
Vi quem é que engana
O tempo e o temporal

Roube, leve um pouco de mim
Que eu fique mais leve assim
Pouco a pouco se solte do sim
Solte-me, roubar é mau

Do alto da vista plana
Parte de mim, sacana
Pior que rolar na grama
Do bem eu sugo o mal

Do beijo de quem me ama
A vida que nos engana
O fim, o mais sacana
Cresce a grama, é matagal.

Roube, leve um pouco do fim
Mas deixe um pouco pra mim
O fim de tudo é o mais ruim
O bom é o início da parte final.

terça-feira, junho 20, 2006

Almoço no fim da tarde para refrescar a janta
A natureza é a mais mentirosa das almas
Para ela, a verdade é perseguida, mas nem tanta
Com mãos que, sem dedos, batem palmas

domingo, junho 18, 2006

Seu Gonzalo, o esquecido
Em uma manhã de domingo, como tantas outras manhãs de domingo que só começam à uma da tarde, Seu Gonzalo foi ao banheiro. Mas não foi direto; não foi sem antes buscar o jornal do dia seguinte na porta de casa; não sem antes se esquecer onde pusera os chinelos e se lembrar onde os colocara e tropeçar no momento em que encaixava um deles nos dedos errados. Seu Gonzalo ainda pegou um pacote de bolachas na despensa e, aí sim, finalmente, dirigiu-se ao banheiro.
Como não estava descalço, não percebeu o frio do chão, e acabou por se assustar quando sentou na privada e gelou a nádega direita - levantou rapidamente a esquerda assim que sentiu aquele gelo e só a desceu aos poucos, em etapas, depois.
Seu Gonzalo ia cagar.
Não tinha pressa, tinha um jornal todo para ler: seu jornal todo era constituído do caderno de esportes, a programação da televisão e as fotos, não exatamente nesta mesma sequência. Nesse domingo haveriam dois filmes bons (um do cara que se fantasiava de empregada num outro filme e outro duma empregada que se vestia de princesa e perdia um sapatinho), ambos na mesma hora; além de solucionar tal problema até as seis da tarde, teria a difícil tarefa de decidir se troca-ve, ou não, o Fantástico pela cerimônia do Oscar. Foi entre a análise minuciosa da tabela do Campeonato Catarinense e a do Paulista que Seu Gonzalo se lembrou que se esquecera de cagar.
Esquecera-se também de abrir o pacote de bolachas, o que, porém, era um problema muito menor, pois Sêo Gonzalo não havia propriamente se esquecido de fazer cocô, ele não se lembrava de como executar o verbo; não sabia mais como defecar.
Com a estranheza de desaprender o que nunca havia aprendido, veio um pequeno medo de aprender o que nunca antes fora ensinado. Seu Gonzalo começou por dobrar a barriga; dobrou a barriga, enrolou o estômago, o intestino, tentou amassar a bexiga, esticou as pernas. Nada. Deixou a coluna ereta, tentou empinar um pouco a bunda, prendeu a respiração, fechou os olhos. Nada.
Todas as partes do seu corpo eram saudáveis, só comia carne branca (e apenas nos fins de semana), tomava apenas suco e leite desnatado; não estava doente, nada doía. Perfeitamente normal. Mas qual era o músculo que deveria usar?, pensava, deveria ser um dos involuntários, mas como fazer voluntariamente um destes trabalhar? O próprio ânus ele conseguia abrir e fechar, mas, tal qual um olho em tempo de paquera, ele só piscava e esperava, nada além acontecia.
Pensou em deixar a tarefa para depois, contudo aquela necessidade não o abandonaria, ele estava com vontade gostosa de cagar e deveria fazê-lo agora, sob pena de ter de se contorcer todo no banheiro do trabalho no dia seguinte, expectativa nada agradável. No seu trabalho havia Seu Odorico, e dividir o banheiro com Seu Odorico era perigoso. Levantou as calças e foi correndo buscar um copo de água na cozinha, bravo, jogou o pacote de bolachas em uma prateleira, quem dera que nunca tivesse comido nada para nunca ter de fazer cocô. A água ajudou menos no problema do que a defesa do Palmeiras ajuda o goleiro, mas pelo menos o deixou mais tranquilo - o que não acontece com os zagueiros do seu time. A água de certo modo fora tranqüilizante, trouxera uma possível solução para os seus problemas, só beberia líquidos daqui por diante. Diante da aterrorizante perspectiva de acumular sólidos no estômago e nos intestinos até morrer, o fato de que ainda tinha o know-how de como mijar o reconfortou, só beberia líquidos dali por diante. E pensar que se desesperara quando calculou apenas mais três dias normais de vida! Com base que seu estômago estocava até três quilos de comida (a partir dali ele se sentia satisfeito e não conseguia sequer colocar uma última ervilha na boca), comendo uma refeição diária de um quilo o presentearia com mais setenta e duas horas de vida normal e quarenta e dois dias de sofrimento numa greve de fome forçada se começasse a praticar budismo e não assistisse propagandas de cerveja. Não que não pudesse tomar cerveja, é que a visão de uma chamava a vontade de comer amendoim; e amendoim estaria definitivamente proibido.
Pensou em Deus, pensou em deus e lembrou de amendoim e tentou desviar o assunto. Pensou em sua situação, sentado na privada sem saber o que fazer, e pensou novamente em Deus e se Deus gostava de amendoim. Seo Gonzalo estava com fome.
Ele estava decidido a ficar ali até resolver seu problema, ele era mais forte que sua impotência amnésio-defecativa, ficaria ali sentado nem que fosse até anoitecer, e já estava anoitecendo; e mesmo que estivesse anoitecendo, não sairia dali até a noite, e surpreendentemente já era noite e Seo Gonzalo já reconsiderava a idéia de deixar pra fazer cocô no dia seguinte, antes do trabalho, antes de Seu Odorico.
Lera os quadrinhos e a parte esportiva, leitura suficiente para um domingo, pensava, e aí teve a idéia mais genial da sua vida desde que descobrira como jogar ping-pong com a parede; tomaria laxante.
Considerando suas outras alternativas, era o futuro mais promissor que se apresentava, viveria tomando laxante. Não precisaria fazer esforço com os músculos involuntários lá-de-baixo, os dejetos apenas escorreriam livremente. Contando dois vidros de laxante e três cuecas novas por semana, o prejuízo por ser tão descuidado e esquecer como defecar não sairia assim tão grande, ao menos não lhe custaria a vida. E foi assim, com sono e sorrindo, que Seo Gonzalo se dirigiu para sua cama, amanhã voltaria ao trabalho com seus problemas bem encaminhados; tranquilamente tirou seus chinelos e se enfiou por entre as cobertas, não assistiria a programa algum, seu dia já fora estressante demais. Um domingo e tanto. Seu Gonzalo estava com sono e foi dormir.
Hoje já faz uma semana que Seu Gonzalo está dormindo, faz uma semana que ele não se apresenta para trabalhar e seus jornais estão empilhados na porta de casa; há uma semana atrás Seu Gonzalo foi dormir e se esqueceu de acordar.

quarta-feira, junho 14, 2006

Arábia Saudita e Tunísia jogam a última partida da primeira rodada, fraca. Não sei por quê, mas a outra copa começou muito melhor, a goleada da Alemanha por 8 a 0, por exemplo.
Surpresas: a Itália venceu e a Espanha jogou o melhor futebol da copa.
Esperado: a Alemanha venceu bem sem seu melhor jogador e Rep. Tcheca jogou só o básico que sabe jogar (e ainda ganhou de três).
Decepções: Portugal, Inglaterra e Ronaldo.

Um cachorro vinha vindo
Do jeito que vinha latiu
Perco-me em seus cabelos
E nos problemas do Brasil
O sol já desce e vai jantar
Esperamos a lua pro café
Eu, você e todo o luar
Sentados, tu sem chão sob o pé.
Ao passar, os cães são passado
e mais minutos se espalharão
Os dias ficam pra sempre,
As horas não passam em vão.
Ao lado de quem se gosta
Goste de quem gostar
O tempo transfere poder
As ondas voltam pro mar.
Cochichos erguem sorrisos
Entre pessoas, altos segredos
Quase tornam públicos
Graças, vontades ou medos.
Que a natureza me entenda
No que vou agora afirmar
Não gosto do amor
Eu gosto de amar
Que as horas compreendam
Que larguem a pressa insana
Que parem para me ouvir
Quero o Sempre contigo, Ana.

terça-feira, junho 13, 2006

Sei como te sentes, mas não te sintas assim; o frio só gela quem não tem medo de mim.
Eu sou seu criador, sou quem criou seus problemas; sou eu quem faz mistérios e dilemas. Enfrente-os e derrote-me sem piedade, sem receio de errar de primeira, de não acertar de segunda e ser um fracasso por toda a eternidade.
Que sua existência te faça sofrer o mínimo que puder, mas o máximo que puderes suportar; não desejo que te acomodes no conhecido e não te movas do lugar.
Sou difícil, superficial e idiota; irrito-me com qualquer tom fora de nota. Esqueça dos horários, esqueça dos seus compromissos, seja forte; e sempre se lembre de mim, deixo-te uma luz no fim do túnel, um presente, a morte.
Sei como te sentes, mas não te sintas assim; o frio só gela quem não tem medo de mim.

Se eu fosse brega-meloso eu faria um poema mais ou menos assim:
Titi e Dy são um casal diferente
Nada no mundo é como a gente
Dy, com você o chão amolece
E cair não dói tanto quanto parece
Se morresse hoje só seria feliz
Se no paraíso da vida tivesse bis
Com você o frio não dá medo
Contigo o calor vem mais cedo
Dy, nada no mundo é como você
Traz cores para o dia de quem te vê
Traz som para um filme mudo
Traz mais esperança para tudo
Saio berrando que amo a Dy
Que meu coração pertence a ti
Com você chorar não trás dor
O que dói se cura com amor
A ausência com companhia
o frio da noite com a paz do dia.

segunda-feira, junho 12, 2006

Foi dia vinte...

Dia vinte não-sei-que-mês-que-ano, fui correspondido. Dia vinte roubei um cobertor com que hoje me aqueço em dias frios. Dia vinte era mais que meio do mês e trouxe mais do dobro do esperado, trouxe o que não se alcança com o erguer das mãos, o impossível com rezas, o mais que plausível com vontade. Esse dia me apresentou a mulher da minha vida (se eu observar minha vida até agora) e a mãe dos meus filhos (se fosse possível apressar o tempo e tê-los agora). Foi o dia mais errado para começar, foi um começo errado do maior acerto da minha vida. Eu amo essa garota, eu admiro essa mulher.
Quando o que tentamos definir escapa de qualquer definição, é preciso desistir dos rótulos, jogar longe os conceitos; é nesse momento que algo imortal nasce, e quando nasce essa coisa que – hoje - nunca vai morrer, é preciso desistir dos conceitos e atirar longe os rótulos. Eu percebi isso num dia de decisão pra muita gente, eram milhares, mas nem tantas vidas foram tão abaladas naquele dia; nas horas em que a conheci, eu não sabia o que esperar, mas tinha consciência do que florescia. No vestibular de dois mil e quatro eu encontrei o que hoje me anela o dedo, num dos dias vinte do ano seguinte cheguei ao ápice do que tanto esperava, do topo pra cima o inexplicável se apresenta, é daqui que escrevo, flutuo por sobre medos e esperanças bobas, navego em rios sem margens e mares de faíscas, faíscas marginais que acendem sorrisos medrosos e bobos de deboche, onde inspiro o ar que me suga e busco sonhos no aconchegar das pálpebras. Um amor de pessoa, uma mulher admirável, um ser que de tão perfeito clama por um adjetivo novo que o situe entre páginas saborosas dum dicionário velho. A pessoa mais doce, a mais meiga, uma delicadeza só realizada em contos-de-fada; e bela, a mais bela das belezas não vulgares, que inocente dormia esperando pelo beijo que não chegava, perdida entre sonhos e raciocínios lacrados. A mais ingênua e pura das belezas caiu-me nas mãos e se apossou do meu coração, a pessoa mais querida, a mais legal, e digo isso para que se eternize, não para que me renda frutos, digo isso para que ela continue mesmo sem mim a flutuar por sobre os medos dos vãos, por sobre a sujeira dos fracos, a criatividade em pessoa, um anjo de alegria.
Achado não é roubado, se foi deus quem o perdeu, fui eu quem o encontrou. Esse anjo é meu e não devolvo.

domingo, junho 11, 2006

Dois Velhos e uma Vela

Dois velhos e uma vela. Não se conheciam, nunca haviam se falado, e comiam açúcar. Dois sacos com dezenas de quilos de açúcar cada, quem desistisse primeiro perdia. Ambos eram bem dotados para o desafio, possuíam panças enormes, daquelas que obstruem a visão dos pés; um era já careca e não tinha cabelos, o outro os tinha atrás da orelha e usava óculos.

- Prazer, Costinha, disse Costinha.

- Meu nome é Genésio, mas pode me chamar de Gené, respondeu Genésio, também conhecido como Gené.

Não se viam, fazia parte do ritual; deviam ficar com suas costas encostadas, isto é, um de costas para o outro, sentados no mesmo banco comendo açúcar. Comeriam o máximo que pudessem até que o tempo se esgotasse; o tempo seria medido por uma vela, quando sua chama se extinguisse, veriam qual dos sacos estava mais vazio, valendo também, como prova extra, o saco que estivesse menos cheio; o vencedor seria decretado, então.

Os dois velhos e a vela estavam lá, assim como os sacos de açúcar, o banco, o chão e as paredes da cabana. Daquelas bem rústicas, a cabana era destinada anualmente para o rito; com paredes de madeira grossa e um telhado de palha bem acabado, ficara famosa desde sua construção, quando o primeiro velho que lá entrara de lá não saíra. Ainda morava no mesmo canto da casa, ao lado da menor janela, e, com olhar absorto fitava os dois recém-chegados. Era ele quem substituiria por sacos cheios os sacos vazios, era ele que era barbudo e também era ele quem não tomava chá. Não que alguém ali fosse tomar chá no momento.

No momento só havia esses três velhos e a vela, ali; e um cachorro verde.

Sim, porque cachorros verdes existem, mas esse era pequeno como um cachorro que não é grande. Ele estava encolhido logo embaixo da cadeira onde o Velho de barba descansava, agora, de olhos fechados. Não fosse a luz da vela, não se veria uma mosca naquela cabana. Não que houvesse alguma.

Costinha foi quem deu a primeira colherada. Deixou que os deliciosos microgrãos lhe escorregassem pela garganta, levando aquela saliva adocicada para seu estômago amargo. Genésio quando ouviu que o outro já começara, pôs na boca logo duas. O gosto era bom, não há quem não aprecie a felicidade medida em gramas; logo que a língua aperta o açúcar contra o céu da boca, os lábios disparam um sorriso involuntário, irresistível. Tudo é coordenado, os braços amolecem, as pernas ficam meio bambas; Gené quase que deixou a cabeça cair – lembrou, porém, que podia dar outra colherada, e depois viriam mais outras, e se convenceu de que perder a cabeça ali não lhe seria lucrativo. Costinha, grande puxador de papo, tentou desenrolar uma conversa e, ainda com a boca atolada dos cristais brancos, disse, como quem comenta sobre o tempo lá fora?

- Hum, esse açúcar é dos bons. Quer uma colherada, Gené?

Fôra esta uma das famosas provocações que transformavam Costinha em um famoso provocador? Genésio fingiu não ouvir e colocou mais uma colherada de açúcar na boca; o Velho, no canto da cabana, ou fingiu que não ouviu, ou não escutou nada mesmo. Muito pouco se falou até que o primeiro saco de açúcar, o de Costinha, findou. Era hora do Velho intervir, Ele dormia, todavia.

O cachorro, aquele verde, era o único responsável por algum movimento na cabana; ele que avisava ao dono a hora dele, o cachorro, comer, e o momento Dele, o Velho, se alimentar. Se mordia sua própria pata, era ração, se mordia o calcanhar Dele, era comida que devia ser consumida na cabana. Mas e para trocar o saco de açúcar? Morder o quê? Por vezes, acertar o lugar da mordida torna-se decisivo na vida. O pequeno cão havia sido um presente da mulher daquele Velho, mulher esta, conquistada à custa de muitos silêncios – que são, de longe, mais valiosos que imagens. Ela lhe dera pouco antes de morrer, poucos depois de adoecer, ela o amara. O cachorro a substituiu nas tarefas domésticas, e o substituía, agora, na função de substituir sacos de açúcar, ao levar um cheio para Costinha.

- E eu concluo finalmente – disse ele concluindo, finalmente -, eu nunca a amei! Fi-la entender isso aos poucos, muito lentamente, para que, quando compreendesse, já não pudesse mais me deixar. Sofreria por todos aqueles que foram duramente desdenhados algum dia por uma bela mulher. E eu afirmo, ela sofreu. Eu te digo...

Se nem Genésio, que comia açúcar, nem o Velho, que dormia, ouviam o discurso de Costinha, presume-se que seria o cachorro verde quem o escutaria, se este estivesse minimamente interessado em digressões de bêbado. Pois embebedados de açúcar estavam ambos os velhos carecas; o outro, o do canto dormia. O “do canto” presenciara acontecimentos demais em sua turbulenta vida, presenciara incontáveis vezes o sol nascer no desligar da noite, testemunhara mais de mil e duas tempestades e algumas milhares de brisas matinais. O do “canto”, agora acordado, observava interessado o que acontecia em sua cabana: metade da vela fora derretida pela chama; metade dos sacos de açúcar – que embebedam aqueles distantes da natureza – jaziam vazios nos pés dos velhos; metade do cachorro desverdeara.

- ... do cabelo. Admita-me, porém, Genésio. Se as mulheres não são objeto, por que se “empacotam” tanto? Por que continuam a ....

O Velho da cabana não era muito de ação mesmo. Já olhava com desconfiança o fogo que, da vela, digeria rapidamente a cera vermelho-esverdeada e, em um passo seguinte, se serviria das cortinas como sobremesa. Ninguém notara, ou calculara, que fogo se multiplica em contato com cortinas e afins; nem o Próprio, que fora quem o acendera; e que fora o único que não gritou por socorro, nem correu, nem mesmo se levantou, quando do anúncio do incêndio, pelas nada originais palavras de Costinha:

- Fogo! Socorro, fogo! Fujam, corram! Fogo!

Em poucos segundos, todos fugiram floresta adentro: Costinha, Genésio e as cinco crianças de Genésio – não mencionadas até o presente instante, por pura falta de ação dramática, ou por serem apenas figuração, ou mesmo por não exercerem papel algum na história. O certo é que todos fugiram e chegaram às suas casas em segurança. Impossível, contudo, é descrever o que se passou com o Velho do canto da cabana. A notícia, a mais recente que me chegou, mencionava o cachorro Dele do lado de fora da cabana, latindo para a porta, para o último morador da casa, em uma desesperada tentativa de cumprir sua tarefa – a de assistir o Velho, a de zelar por sua saúde até o fim. Lembro-me dos Seus olhos angustiados, naquilo que era o começo do fim da Sua cabana, e os olhos desesperados de seu servo verde, do outro lado das chamas. Ainda ouço, por vezes, o latido impotente que não ouvi daquele cão. Qualquer latido me estremece se noite for. E açúcar também, criei nojo de doçura; o doce maquia o verdadeiro teor salgado do mundo, a real amargura da vida. O doce faz o tempo acelerar, faz sessenta segundos somarem mais de um minuto, esquenta a água do banho, refresca a água do filtro. O doce azeda.

Enfim, não sei se Ele viu a milésima terceira tempestade, penso que sim. Eu? Eu sou o fogo, sou o filho do Velho. Sou o filho do Velho e o pai do incêndio; eu era a chama da vela. Eu sou o fogo que esquentou a festa e quem, queimando galhos no escuro, saiu pela floresta com os olhos lacrimejando. Ou matei meu Pai ou o salvei da inércia eterna.

Por ironia, daquela cabana, além das cinzas, restou caramelo e um cheiro de agridoce de melado. Lefratel

sábado, junho 10, 2006

Perdigão caminhava sozinho pela calçada, daquelas pouco movimentadas; olhava para seus próprios pés, direito, esquerdo e direito de novo; caquinhos do mosaico preto e branco se arrastavam e eram abandonados pelas solas dos seus pés, seus próprios pés desistiram de sentir o chão, ninguém lhes dava atenção; Perdigão estava muito longe, divagava por outros tempos em diferentes cidades, em dias não-iguais por entre lugares afastados, onde deixara seus chinelos? Ele via apenas duas cores e dedos de dois pés e o invisível do vento que os afagava, sendo seis os continentes, ou sete ou cinco, com a margem de erro de hum, sendo a matemática o problema mais fundamental e mais pragmático que por primeiro é deixado de lado, papel de bala no chão - daquelas de cereja com frases de amor -; sendo duas as minhas pernas, duas as margens dos rios, duas as pessoas que fazem um par, areinha fina - aproxima-se da praia, voltar para a esquerda -, sendo quatro os elementos, e quatro as patas dos animais, e sendo quatro as operações fundamentais, frio; Perdigão onde estava desconhecia, os lados perdiam valor, a rua à direita, a praia à esquerda, o vendo da esquerda para a direita, o sol vindo de cima, o frio o gelava desde o chão, onde estavam seus chinelos? Via os sons passarem e se chocarem quebrando-se entre seus passos, sons de pneus, sons de passos, ondas estourando, chocando-se contra canelas corajosas, sendo das as canelas, sendo três os versos da última estrofe do soneto, sendo quatro as direções, sendo mais de seis tipos de mortes possíveis, sendo poucas as chances de parto natural de quadrigêmeos; hoje devolvera o último filme na locadora, usara o último centavo do bolso na multa, impactado por suas descobertas filosóficas, por se descobrir filósofo e por descobrir a possibilidade de, apenas assistindo a um filme, obter essa faculdade, Perdigão decretava a morte do seu bem-estar, a despedida do bem-bom e o início da fecundação dum novo modo de viver; sendo vinte a soma dos dedos do bêbado, sendo vinte a soma das unhas do magnata, sendo dois os olhos do pobre, sendo que dois também era o número na face do deputado, sendo a grávida a que tem mais dedos, sendo os dedos quem possuem unhas. Curava-se uma existência de filmes e músicas do momento, de nunca-não-ler, Perdigão seria quem teria sido não houvessem descoberto a televisão, o dinheiro, a fama e o poder - não exatamente os quatro, mas não menos que três deles.
Pés cansados de caminhar são tão úteis quanto dentes que não desejam mastigar, pulmões sem respiração que fingem engolir saliva ao secretarem lágrimas; embora falsas, lágrimas são sempre lágrimas, sendo mais de dez os minerais que as compõem, sendo mais de vinte as sensações humanas, sendo que não contava distorções causadas por uma emoção qualquer que surgisse repentinamente. Perdigão era outro, seus pés que eram os mesmos e não entendiam o porquê de tanto sofrimento, o porquê da falta de um rumo, da ausência de chinelos; onde aquele filho-da-puta os pusera?

Setenta e duas sombras me seguiam por corredores escuros. Mas sombras só se manifestam quando há um mínimo de luz, pensei, e elas sumiram imediatamente. Agora me perseguem por entre praias e calçadas ensolaradas, sobre as quais meus chinelos fazem barulhinhos com a areia. Não me importo, embora me persigam o tempo inteiro, sigo em frente sem olhar para trás. Na verdade, ontem, olhei e uma acenou para as outras em contentamento, tinham sido percebidas; mas quando mal se arrumavam para me assustar, virei-me e comprei um picolé. O picolé durou pouco, caiu ao meu lado e fez barulhinhos na areia. Então lembrei-me das setenta e duas sombras e que elas não faziam os mesmos barulhinhos, mesmo sendo as que mais tinham contato com a areia. Voltei-me e ensaiei uma conversa com algumas das cinqüenta e duas sombras, e quando notei o fato, de que não passavam de quarenta, calei-me. Olhei para a praia, para cada guarda-sol na areia, para cada dedão apontando o céu, voltei-me novamente para as sombras, apenas uma. Teríamos começado uma grande amizade, agora, a sós, caso um grão de areia não me tivesse feito piscar.
Sentado num murinho, rodeado por setenta e duas almas ao sol, nunca a solidão me fez tanta companhia.

quarta-feira, junho 07, 2006

1
Eu venho de ônibus
Vim te procurando
Amor, não sei se pus
Nem onde, nem quando.
O continente de confissões
que pertence ao seu mundo
um estado de ambições
está desde o início imundo.
Do continente sai o pus
Que venho procurando
Por estados nada limpos
De ônibus viajando.
Amor, confesso assim
Que pertenço a ti
Tanto como tu a mim.
Ambicione o começo
Da linha, não o fim.
****
**
*
1
Escondo-me entre seus braços
Encontro-me nos seus abraços
Brinco de voltar a ser criança
Que se suja, que ri e que dança.
2
Façamos um castelo na areia
Pense em quem queres de rei
Desconfio quem seja a sereia
Pois da rainha sou eu quem sei
3
A sereia é seu ciúme sorrindo
E a rainha é você de vestido
Eu de rei como sempre tem sido
Com súditos de pé aplaudindo.
4
O deus sol te fez pra mim
O teu sol é quente assim
O dia dura pouco, é menor
E deixa a lua luar melhor.

Ame a todos, diga isso a todo mundo, mas não confesse a mentira a ninguém.
Morris virou a esquina, continuou andando, duas quadras depois virou a esquina de novo, virou um quadrado e foi rolando morro abaixo. Ao rolar, Morris foi perdendo suas arestas, seus lados, e acabou no formato de uma pêra. Gláucio gostava de pêras mas não o escolheu, escolheu a pêra ao lado, que vinha da Argentina e custava dois centavos a menos. Morris ficou abandonado na cesta de frutas velhas da feira. Gláucio, que também comprara arroz, voltou pra casa andando. Duas quadras antes de chegar em casa, virou a esquina e virou um quadrado e foi rolando morro acima. Ao rolar, Gláucio viu Morris no formato de pêra e perdeu suas arestas até ser confundido com Morris e, com a mesma forma do amigo, ser escolhido por Arnaldo na cesta de frutas novas da feira. Morris continuou abandonado na outra cesta. Arnaldo estava de carro e por isso foi direto para casa, em linha reta, sem virar em esquina nenhuma. Mas chegou em casa e virou as meias do avesso, para lavar no tanque, e virou pó de amaciante. Alfredo então espirrou e espalhou seus restos mortais por toda a área de serviço. Enquanto Gláucio e Morris apodreciam, ele polinizava azulejos.

Uma noite acordei de madrugada para tomar café-da-manhã, mas terminou que já era hora de jantar, o que me obrigou a pular o almoço.

Enquanto todos esperavam por uma surpresa, surpreendentemente ela não aconteceu.

Tenho um anjo-da-guarda que só aparece pra me cobrar a mensalidade.

Antes de pensar em morrer, morra sem antes pensar.

Eu achei que era inteligente. Inteligente é quem acha que é burro, esses são os únicos certos.
Por mais que eu corra, nunca consigo escapar do meu passado.
Por mais que eu espere pelo futuro, ele nunca está presente.

terça-feira, junho 06, 2006

A certitude na afirmação de alguém é inversamente proporcional à sua inteligência. Só os burros é que têm certeza.

"Posso compreender como seria possível um homem olhar com ares de superioridade para a terra e ser um ateu, mas não posso conceber como poderia levantar os olhos para o céu e dizer que não há Deus" - Abraham Lincoln