sexta-feira, julho 20, 2007

Espetáculo entre Copas e Cabanas

O Atlântico mirava-me absorto, despenteado e cruel. Quebrava-se com ferocidade nos restos mortais de escamas-de-peixe milenares. Feitas em caquinhos, misturavam-se com uma espécie de pó branco no solo preto-e-branco sobre o qual eu divagava. Mosaico de quereres breves construíram-no décadas atrás, um quebra-cabeças desigual e rudimentar que gelava meus pés. Meu tornozelo, como um imã, atraía uma multidão de sujeira cinza e amarela, meus calcanhares machucados reclamavam dos respingos vermelhos que os encharcavam.
- Meu Deus! Você está bem? Precisa de um médico?
- Ora, claro que precisa! disse uma senhora cheia de dobras. - Não vês que ele está a sangrar?
A senhora das dobras, que agora discutia com não sei que palhaço escondido atrás de enormes bochechas rosadas e desenrugadas, a senhora das dobras certamente vinha de onde desancoraram há quinhentos anos seus conterrâneos e nossos descobridores, os criadores daquele carnaval de bugigangas importadas e imprestáveis em troca do nosso vigor inocente, permutando a paz pela falta dela. Devia estar de férias dos palácios e da empáfia portuguesas, viera buscar neste continente a inocência e o vigor que evaporara do outro lado do Atlântico. Este, mais violento do que sempre, não convidava banhistas para um mergulho, mas sim turistas para um passeio e uma sessão de fotos.
Como um imã, estrangeiros atraíam uma multidão de sujeira cinza e marrom e preta e amarela de cima dos morros. Uma sujeira que eu costumava defender e que a mídia tem o hábito de ocultar. Não desgostava “deles”, admirava seu vigor de sobrevivência ao sistema, sua garra e sua alegria, até esvaziarem meus bolsos, dilacerarem meu filho e rasgarem meu estômago. Ódio é raiva pouca numa hora dessas.
- Vai desmaiar.
- Tragam-lhe uma água, ora pois, que o socorro está a chegar, disse a lusíada confusa, mas dona da situação.
- Foi assalto?
- Acho que não nos ouve, está em choque.
Ouço sim, apenas não estou para entrevistas. Foi; assaltaram-me. Tentei reagir, mas os dois pirralhos me levaram tudo: sapatos, dinheiro, sangue e filho. Como abutres em volta do seu corpo, mandaram-me correr sem olhar para trás. Obedeci qual índio catequizado. Não olhei. O passado não interessa àqueles que não pertencem ao futuro. Se morro agora, vou-me feliz - talvez ainda alcance meu pimpolho e façamos um companhia ao outro até os portões da eternidade e juntos jantemos no Paraíso.
- Ai, nossa, olha a camisa dele!
- Abram espaço! Deixem-no respirar.
- Alguém liga de novo para alguma ambulância, pelmordideus!
- Meu celular está sem crédito.
- O meu, fora da área. Sou do interior de São Paulo. Também é violento lá.
Acho a Copa bacana. Parece-me que não verei a próxima. Perderei a final do basquete feminino no Pan. O Rio, o paraíso, está em festa. Alguém tinha de estragá-la. Por que não escolheram algum turista perdido e mais abonado? Por que tanta violência contra um morador do local? Acho que a roupa engana.
- Eu vi tudo, foram os filhos do Maringá. Passaram correndo do outro lado. Já devem estar bem longe.
- São umas pestes.
- Alguém devia era dar uma boa lição neles.
- São menores, estarão limpos quando crescerem.
- Pelo menos uma surra…
Lições? De todo o ocorrido, aprendo que as facas devem permanecer dentro das copas e o lixo não deve escorrer morro abaixo, deve hibernar eternamente em vilas kafkianas e cabanas sem videogames. Claro, também aprendi que, assim como o crime, reagir não compensa. Somos reféns do inesperado - desde Cabral, o inesperado nos cerca, nos empareda e nos catequiza.
O sal de uma lágrima dissolve-me dos lábios o pó acumulado; o dia escurece e nem é noite ainda. Voltem para suas casas, escondam-se atrás de grades, o show terminou.