domingo, julho 30, 2006

Senhor dos Céus
ouça seus filhos
do inferno, réus
do bolo polvilhos
na massa de ateus
bêbados em trilhos

Filhos do inferno
morram sem teto
réus sem inverno
abortem sem feto
e vistam-no terno
prejuízo, lucro abjeto

Escutamos ruídos
condenados que somos
morrem ouvidos
nascem microssomos
mal-desenvolvidos
tão imperfeitos como já fomos

outro dia ouvi isso e achei bom:
Perguntaram a Picasso o que ele faria se fosse trancado em uma cela, sem nada, totalmente vazia, de modo que não pudesse exercer sua paixão de pintar. Respondeu que se encolheria num canto, bem quieto, esperaria a poeira baixar. Pintaria, assim, a poeira com os dedos.

quinta-feira, julho 27, 2006

o segundo tiro não dói tanto
a dor inerte espanta o pranto

segunda-feira, julho 03, 2006

Sobre a Expansão ou Bananas

Foi quando tentei alcançar o copo, o copo d´água que sempre deixo sobre o criado-mudo, foi quando tentei alcançá-lo, que percebi algo estranho; ele não estava lá. Tive de me levantar com os olhos ainda colados do sono, esperar que desembaçassem, para avista-lo ali, só um pouco mais distante, acho que no outro extremo do criado-mudo. Ora! Sempre deixo meu copo perto de mim, justamente para não ter de me levantar para beber água!
Por ser muito cedo, talvez não tenha dado a devida importância, eu andava mesmo um pouco estressado: não arranjava trabalho, era culpado por meus pais por isso; não mais procurava arranjar emprego, o que dava ainda mais munição para o ataque dos meus pais. Já fui mais ocupado, definitivamente já fui.
Pois bebi do copo e desci para o banheiro. Moro em um chalé quadrado, sem divisórias: minha cama fica de frente para a cozinha, mas em um piso mais alto; quando durmo de lado, observo a porta e a sala. Que é de tv-estar-jantar. Existem cinco níveis em minha casa – chamo-o assim, meu chalé, de casa: o banheiro é a parte mais baixa; subo um degrau e chego à cozinha, no que viro para a esquerda, subo mais outro degrau, e estou na sala; com mais dois, chego à minha cama; e, por fim, a parte mais elevada serve de guarda-roupas (as roupas ficam no chão, que fica à altura da cintura). Pois desci para o banheiro e, diferente de como começou, aquele dia terminou igual todos os anteriores.
O problema todo, de ter prestado atenção ao copo no dia anterior, foi ao acordar no dia seguinte: o copo, novamente, estava fora de alcance. Juro que me esforcei; o máximo que consegui foi girá-lo um pouco. Por Deus! Na noite anterior, eu o deixara cuidadosamente bem ao lado da cama, não cometeria o mesmo erro duas vezes! Desde que deixamos de comer bananas pendurados em galhos, aprendemos com nossos erros; alguns de nós, pelo menos.
O que fazer? Pois eu digo o que fiz, nivelei o criado-mudo. Pus um jornal sob um de seus pés e resolvi o problema... por mais dois dias. Por mais dois dias pude beber água tranqüilo, ao acordar, sem o esforço de ter de me levantar para tanto. E não é que no terceiro dia, e já era fim de semana!, o copo, de novo, fugiu de mim? Não tentei nivelar novamente o pobre do criado-mudo, não era culpa dele, o coitado estava visivelmente inclinado para o meu lado e, ainda mais visível, o copo não estava no seu outro extremo, estava perto de mim! Minha cama é que, por sua vez, estava mais longe!
Nunca tive problemas com espíritos: em um trato mudo, tácito, não me incomodam, e não acredito neles. O diabo também não é hipótese válida, prefiro Guimarães Rosa e Goethe; Diadorim a Fausto. Deus, já pedi, mas até agora não me mandou sinais de vida. Errei muito pelo misticismo, ouvi música com plantas, escutei e segui recados de planetas, construí uma grande amizade com uma colher (foi de uma hora pra outra que ela terminou com a relação me trocando por um garfo). Desisti de vez quando discuti com o mar, ele queria me convencer ser uma vantagem não saber voar. Mas agora, sem motivo racional nenhum, minha cama e meu criado-mudo acordavam cada dia mais distantes! Como cético militante que sou, assustei-me por três dias daquela palhaçada, só voltei da casa dos meus pais na segunda à noite, depois de brigar muito com eles. Não mencionei nada do comportamento estranho do meu leito.
Por sorte, ao abrir a porta, percebi tudo normal. Tudo em seu devido lugar. Foi quando fui dormir, foi quando fui apagar a luz do abajur, que percebi não ser possível, da cama, fazer essa tarefa. Missão essa que há anos eu executava de olhos fechados, apenas esticando o braço para o lado. Foi quando fui dormir que percebi ter subido três degraus até a minha cama. Pelo que descrevi, ficou claro que, entrando pela porta, eram só dois degraus da sala até a cama, não? Pois é, pois eram. Quando fui dormir, me dei conta que subira três. Dá para imaginar chegar em casa e encontrar um degrau a mais em sua casa? Não, eu também não acreditei, resolvi dormir e deixei para resolver o problema arquitetônico depois.
Nem tentei alcançar copo nenhum ao acordar no dia seguinte. Levantei-me e, automático, fui ao banheiro. Desci seis degraus para isso! Do banheiro para a cozinha estava normal; da sala para minha cama continuava anormal, mas com os mesmos três degraus da noite anterior; o problema agora era da cozinha para a sala, eram dois degraus – um deles, recém-nascido. Considerando que nunca usei drogas, e meu trabalho, que é o de procurar emprego, por falta de dinheiro me impede de beber, concluo estar sóbrio naquele dia. Me recusei a acreditar em qualquer coisa de sobrenatural; se estivessem querendo me convencer de algo, teriam de fazer mais do que aquilo; até eu sei construir degraus. Continuei minha rotina normalmente, fora o fato de não ter rotina (para mim, rotina é quando se faz algo igual todos os dias: eu não fazia nada dia nenhum), e de não sair de casa. Decidi permanecer na cama o máximo de tempo possível, observar qualquer mudança na casa, por mais sutil que fosse. Foram quarenta e oito horas ouvindo pequenos ruídos, estalos, sem porém nada não ver. Enjoei.
Com meu notebook, deitado na cama, passei a anotar o dia, a hora e a intensidade (por meio de uma combinação de asteriscos) de cada barulho. Criei também uma tabela para o número de degraus e para as medidas dos cômodos da casa: da minha cama até o banheiro, por exemplo, no primeiro dia medido, eram apenas quatro metros.
A mudança foi brusca. Depois de uma semana de crescimento lento – constante, mas lento -, o chão acelerou seu capricho, como se me desafiasse. E daí não parou mais. Eu emagrecera de tanto andar pela casa, eram metros e metros até a cozinha para tomar água, para o banheiro então, com mais uma semana, pelos meus cálculos, seriam quase setenta metros! Setenta metros de caminhada para chegar ao banheiro! E isto dentro da própria casa! e sem contar a volta! Quando esta distância chegou a duzentos metros, só de ida, me recusei a continuar a brincadeira; passei a fazer as necessidades através da janela ao lado da cama.Também parei de freqüentar a cozinha, há duas semanas que não como, há uma não levanto da cama, não há mais necessidade de usar a janela como banheiro, mesmo porque está muito longe. Agora devem somar uma centena, os degraus até o banheiro. Minhas roupas, não as vejo mais; estão em um andar muito alto. Parei de alimentar meu cachorro. Bem, meu cachorro? Há alguns dias o ouvi chorar pela última vez, continuávamos nos vendo até então, eu lhe falava palavras doces daqui de cima, e ele, lá na cozinha, tentava em vão subir a escada: os degraus eram muito grandes para suas pequenas pernas. Ele me olhava com lágrimas nos olhos lá de baixo. Sim, cachorros choram. Eu vi; eu vi com os mesmos olhos que agora não conseguem mais enxergar a porta do banheiro. Muito longe, não há volta, nunca mais verei meu banheiro novamente. E nem meu cachorro. Que Deus exista e que Ele o tenha! Meu cachorro não tem culpa de nada; ele não sabe que é pecado pecar.
Não o ouço mais, e isso me angustia.
Outro dia meus pais entraram aqui em casa. Trouxeram gente. Parece que vão alugar meu chalé, parece que não perceberam nada de errado por aqui; parece que não me viram – e eu juro que gritei daqui de cima. Se eu podia ouvi-los, por que não podiam eles me ouvir? Deram umas voltas pelo banheiro, pela cozinha, pela sala, e se foram. As pessoas que os acompanhavam se mudaram no dia seguinte, faz um mês que habitam minha cozinha, nunca subiram aqui. As pessoas geralmente não podem subir distâncias tão ocas quanto suas mentes. Eu não desço daqui por nada; não terei forças para voltar, encontro-me no meu recanto mais seguro. Se acontece isso aqui dentro, aqui no meu lar, quem me garante que algo pior não esteja acontecendo lá for?
O suprimento de comida que eu trouxe da cozinha acabou, como já mencionei; há duas semanas; estou faminto. Estou no meio do nada. Não vejo mais as paredes do quarto, tornaram-se brancas, lá no fundo, fundiram-se como o teto, que também não mais avisto. Estou no meio do nada, e o nada é branco. Somos apenas três solitários aqui: minha cama e eu, e o maldito do chão, que foi quem começou toda essa palhaçada. Escrevo tudo isso em um notebook que talvez nunca será encontrado. A bateria está acabando, não vejo mais tomada alguma para recarregá-la. Não plantei nenhuma árvore, não tive nenhum filho; que este texto valha como minha contribuição para o mundo, para o entendimento do improvável. A compreensão do absurdo. Não poderei leva-lo a nenhuma editora, pois me é impossível descer desta cama, o chão fugiu para longe. Foi como se ele esticasse, se expandisse e me abandonasse; não é mais possível vê-lo lá de embaixo. Minha cama voa para lugar nenhum, minha cama voa sem sair do lugar; o lugar foi quem saiu daqui, o lugar todo foi que desapareceu. Devo me despedir aqui, tentarei uma idéia que me ocorreu ontem, se foi ontem o que houve antes de hoje, se o tempo ainda me pertence. Vou pular daqui, desta cama. Talvez seja uma traição com a única coisa que não me abandonou, mas sinto a obrigação de um último gesto heróico. Tenho de tentar; é tudo tão sem sentido que, se eu tentar algo com sentido algum, o resultado, quem sabe, possa ser satisfatório.
O nada está branco ao meu redor, o nada é branco. Não consigo parar de escrever. Acabo de jogar um travesseiro para fora e ele sumiu tão logo o soltei. Tenho medo do branco que me cerca, tenho saudades da escuridão. Só a provo quando fecho os olhos, mas fica meio avermelhado, quero o preto de volta. É impossível agüentar apenas o branco. Não sinto ser adequado dormir sem um chão que segure a cama. Na realidade, não sei nem se durmo agora – fisicamente, o corpo não deve agüentar tanto tempo sem sono. Nem sei se sonho, que sabe sonho que escrevo isto, talvez seja eu quem esteja lendo este texto, talvez seja outro eu sofre no meu lugar. Sinto pena de quem quer que esteja no meu lugar, se não for eu que estou aqui.
Fim. Vou pular, vou acordar na minha cama, minha cabeça aconchegada ao travesseiro, esticarei meu braço e alcançarei o fatídico copo; sua água, bebê-lei de um só gole. Me afogarei nela, morrerei no meu mundo, recuso-me a perder a vida aqui. Tento dormir, mas não me é mais agradável fechar os olhos, o branco tomou conta da parte interna de minhas pálpebras.
Acordo de repente, cochilei por alguns minutos. Ou foram por horas? Dias? Não tenho como saber, só sei que minha cama se foi – talvez chateada com minha hipótese de traí-la. Só me resta o lençol agora, sinto-me em um tapete voador que não sai do lugar. A inércia é o que mais me irrita. Se no mínimo houvesse algum vento no meu rosto, indicando que vou para algum lugar, indicando-me que vou, indicando qualquer coisa. Isso é o inferno, só pode ser. Concluo daqui, então, que há sombra no paraíso.
Não escrevo mais, apenas penso; tudo sumiu, sobrou o nada. Joguei o lençol fora, estou pisando no nada. Não é chão, mas não é nada, além disso; caminho sem pés, meus pés também não os vejo mais. Assim como minhas mãos. Há um degrade de mim para o nada, vou ficando transparente aos poucos, aos poucos vou me perdendo, estou escapando de mim; sumo-me.
Acordo.
Finalmente acordo e, sim, alcanço o copo d´água, sem me levantar para buscá-lo, está fresca; ouço meu cachorro vindo correndo me lamber, abanando sua felicidade com o rabo, e meus pais em volta da cama, sorrindo, para me dar bom-dia; como se me pedissem desculpas. Querem ver se estou melhor da febre, parece que estive doente...
Apenas acordar onde eu costumava acordar. Quem me dera terminar o conto assim, como neste último parágrafo. Mas não sou mais eu que tomo as decisões, talvez nunca tenha sido; perdi o controle, estou em um fluxo contínuo de pensamentos. Ainda não entendo nada, faz meses que não entendo nada, há séculos não compreendemos. O Nada. Estou aqui, em lugar nenhum, esperando que o nada me explique tudo. Estou aqui esperando tudo que o nada tenha a me oferecer. Ainda estou aqui, ainda espero, não é tão fácil se livrar de um pesadelo, não é tão fácil acordar da vida. A vida é sempre mais simples pra quem não precisa dela. Para os que não vivem, as bananas.