segunda-feira, outubro 30, 2006

Votei no 89 para presidente, por eliminação, não era o melhor, mas era o menos pior das três alternativas. Meu candidato não teve uma votação muito expressiva, parece que a população não entendeu suas propostas; pelo menos meu candidato não fez alianças eleitoreiras fajutas e contraditórias com Collor, Sarney, ACM, como aquele que se reelegeu. Talvez o problema foram os debates, aos montes: não foi a nenhum deles.

domingo, outubro 01, 2006

O outro

Um formigamento extasiava seus pés, suas mãos geladas pelo vento frio que subia a serra do monte, o mesmo vento que antes cantava suas glórias, o mesmo vento que afagara seus cabelos enquanto declamava discursos inflamados, o vento mudara de lado, as pessoas vingativas e medrosas de sempre, o mesmo "sempre" vingou-se de ter companhia para a eternidade; olhou para seus pés sem esforço, impossibilitado de levantar o rosto, a única cena que observava era o chão em segundo plano, embaçado, desfocado, e seus pés como protagonistas de um carnaval roxo e branco, suas veias saltavam um azul escarlate, crostas de sangue petrificavam-se ao redor do invasor de ferro que se intrometera por entre ossos e cartilagens, não fora convidado, abrira caminho sem hesitação guiado por mãos firmes e irracionais, mas mãos não raciocinam mesmo, via seus pés chorarem, lágrimas vermelhas tamborilavam solitárias pelo chão, fora abandonado pelos seus companheiros, os poucos homens de bem que o seguiram nos últimos anos. Chegara, finalmente à sua crucificação; tarefa cumprida, poderia em breve ir para casa.
Nascera bem, mas não nascera em berço de ouro. Curiosamente, sua progenitora, de nome Maria, não fora sua verdadeira mãe, assim como seu pai não era seu verdadeiro pai. Nada de segredo, ele, nascido homem, também nunca fora realmente como os outros homens. Criado solto nas ruas, quando ruas eram feitas para soltas criarem jovens, convivia com amigos e brincavam de salvar formigas do afogamento certo - elaboravam as condições para que se afogassem, deixavam-nas nadarem até o esgotamento e então resgatavam-nas com palitos ou pedras minutos antes que falecessem. Cresceu sem muito destaque, mas cresceu muito; alto e esguio, destacava-se na multidão. De fala mansa, logo se acostumou a ser a voz a ser ouvida, asserções fortes e prudentes eram suas características; com palavras fortificava braços, com sentenças construía castelos e com castelos fundava um novo mundo. Pregava a paz num tempo turbulento, mesmo que sempre haja espaço para a turbulência, é dever de quem pode tentar combatê-la; professava uma paz que vinha da cura interior que afirmava existir em cada alma; em cada rosto reconhecia um irmão.
Começou a ser seguido e tomou gosto pela profissão: exaltava a fé, a crença num mesmo pai, o acreditar no improvável e por ele carregar a mais bela incógnita consigo. De rua em rua, de casa em casa, transmitia sua palavra em nome do seu pai, seguia sua missão por entre as entranhas de uma comunidade desregrada e sem direção. Desde o tom da voz até o suor da mão espalmada, era admirado por sua mãe, era um filho perfeito, o prometido.
Haviam prometido-lhe a dor e ela chegava por meio de choques recorrentes desde os dedos dos pés. Olhando a poeira que levantava vôo sempre que seu choro atingia o solo, mesmo porque as pálpebras eram as únicas que ainda o obedeciam, era eletrocutado por facas que corriam do peito do pé rasgando-lhe toda a extensão da perna, internamente, deslizavam afiadas por sobre seus órgãos, por cada vértebra de sua coluna; pontiagudas, espetavam-no a nuca, trespassavam a garganta, só eram paradas por seu maxilar que honrosamente suportava toda a dor prometida, apertava seus dentes uns contra os outros com tamanha força que os enterrava gengiva adentro, quase os deslocando de lugar. Uma dor fora prometida, a primeira parte da profecia se cumpria, o segundo passo, a parte final, é que demorava em demasia. Fizera tudo que fora previsto e o imprevisível agora se apresentava, estava só, estava nu e a única imagem que conseguia ver, seus pés ensangüentados pregados a grande distância do chão, essa única imagem sumia-lhe, escurecia-se; ele perdia sua consciência. Mais uns minutos de espera e seria salvo pelo seu criador; aproveitava os últimos segundos de sofrimento, logo logo se aposentaria.
Duas horas antes, subira todo aquele morro carregando sua morte, sofrendo, mas feliz; confiante de sua palavra, confiante de que não seria ignorado, essa era sua missão; carregar o fim da vida nas costas sendo chicoteado por romanos furiosos, ignorantes e inocentes. Seus pés escorregavam numa relva suada, chicotes riscavam-no seguidamente a cada vacilo ou passo em falso. Ouvia poucos gritos vindos da multidão, mas talvez não houvesse mesmo multidão alguma, estava sozinho e fora traído; seu nome estamparia apenas uma linha no livro de execuções do governo, seria mais um entre os ladrões e assassinos. Era, sim, ladrão; roubara almas, assaltara injustiças e furtara preconceitos; purificara durante toda a sua vida, e, quem sabe, durante a eternidade, quem o rodeara. Nem todos purificados, porém; dois dos seus mais fiéis venderam-no em troca de um mísero trocado, deduraram-lhe o esconderijo. O resto da história é comum a todos, foi julgado e como agitador e autoproclamado salvador deveria achar a salvação pendurado numa cruz, como outros ladrões comuns. Agora apenas esperava o sorriso do seu pai, a afirmação de dever cumprido e sua salvação com o conseqüente alívio das dores.
Sem forças no pescoço, desde muito tempo inútil ali de cima, também não sentia os braços; do ombro às mãos havia um vazio, um lapso de conexão, não tinha cotovelos; era apenas cabeça, tronco e pernas, e quem dera não as tivesse mais e cessassem todos aqueles choques vindos da ferrugem áspera que o invadira. O tronco pendia para frente e era abraçado por uma corda posta às pressas para que o corpo se segurasse o suficiente até que a lenta morte fosse finalizada - ao condenado era determinante que morresse na cruz, era a lei.
Escurecia. Escureciam tanto o dia quanto sua visão e ninguém viera se despedir, nem chorar por ele, nem recolher seu sangue, nem salvá-lo. Abandonado anonimamente, o seu monte parecia menos freqüentado do que deveria ser, esperara algumas tochas, alguns curiosos, nada, ninguém aparecera - nem sua salvação prometida, nem o todo poderoso, o criador mentira. Não fora salvo, não era o filho de deus. Afogava-se com a dúvida, talvez não devesse ter rejeitado as ofertas do demo, o diabo ao menos se mostrara preocupado com ele; suava medo, engolia um pranto de desespero, tentou soltar-se daquela situação, não tinha volta, estava pregado firmemente à cruz, agonizava, tremia, trancou a respiração, morreria por sufocamento, mas não resistiu e inspirou depois de segundos; um ódio tomou conta do seu peito, queria se soltar, desmentir tudo que dissera, pedir perdão aos governadores romanos, servi-los-ia eternamente, lamberia seus pés, beijaria suas fezes; qualquer coisa, a liberdade, só queria poder novamente mover-se, caminhar, não, queria deitar-se em plumas de ganso, em plantações de trigo, dormir, deus do céu, queria apenas um pouco de sono; em pé, suado, pregado, pendente, o sono recusava-se a acariciá-lo.
Lembrava-se de sua última ceia, santa ceia aquela, com seus mais fiéis amigos, sua amada... queria-a de volta, abraça-la apenas, encostar corações, tentar grudá-los apertando-a contra seu peito; queria o vinho, queria o pão que multiplicara; precisava da liberdade de respirar sem precisar.
Um último esforço antes de morrer, só para matar uma última curiosidade. Tensionou os ombros, retesou a nuca esforçando-se para levantar um pouco a cabeça, forçava os olhos para cima, tentava ver o outro monte, o monte em frente; enxergou muita movimentação, havia fogo, muita gente, muitas tochas; continuou levantando a cabeça, para o topo do monte, lá estava o desgraçado, acompanhado de mais outros dois desafortunados, muita gente em volta, havia protestos; o idiota era popular, sempre fora o mais conhecido, os últimos dez anos tentara superá-lo em vão, o desgraçado era muito famoso, tinha inúmeros seguidores, dizem que realmente fazia milagres. Mentira! Também fizera milagres, qualquer um pode fazer um cego andar, um mudo escutar, mas talvez o idiota realmente fosse o filho de deus, só assim para explicar tanta gente ajoelhada ao seu redor durante todo esse tempo, só assim para suportar aquela coroa de espinhos e uma placa indicando ser rei. Aquela cena o enojava, as pessoas deixavam se levar por qualquer um que fosse unanimidade, fora assim no tempo de seu pai, seria assim no tempo de seus netos, se tivesse tido tempo de tê-los. Não agüentou mais e deixou cair sua cabeça, a dor penetrava seu cérebro, impossível raciocinar, morreria sozinho, sem placa com nome de rei, sem coroa, crucificado num morro secundário e o pior de tudo, bem em frente ao seu maior rival, ao seu pior concorrente. Ou a vida era muito injusta mesmo, ou compreendera mal seus sinais. Maldição! Nunca mais confiaria em palpites, nunca mais acreditaria em suas próprias conclusões, se tivesse outra chance, já fora longe demais dessa vez, sua mãe sempre reclamara de sua burrice, devia ter acreditado nela, não pensar que era o iluminado, que era o salvador. Deslizou as pálpebras para esconder do mundo seu choro, envergonhava-se, queria sumir, arrependia-se dos seus pecados, queria ser só mais um cordeirinho, queria estar ajoelhado no Monte Sinai, ali em frente, e não crucificado num pedaço de nada; soluçava, estava em prantos, rezava, tentou meditar, tentou cantar, qualquer coisa que o libertasse do destino que não era seu, não fora feito para aquilo, merecia mais, ou melhor, merecia menos dor, menos agonia; não seria salvo, não ressuscitaria no dia seguinte como o abençoado no morro da frente, não teria seu nome declamado em orações como o "cheio de graça" do morro à sua frente; baixava a cabeça, pedia perdão para quem nunca devia ter sido desafiado, não era um concurso, ou se é ou não se é o filho legítimo, o rapaz crucificado no Monte Sinai era bom, era profissional.