domingo, junho 11, 2006

Dois Velhos e uma Vela

Dois velhos e uma vela. Não se conheciam, nunca haviam se falado, e comiam açúcar. Dois sacos com dezenas de quilos de açúcar cada, quem desistisse primeiro perdia. Ambos eram bem dotados para o desafio, possuíam panças enormes, daquelas que obstruem a visão dos pés; um era já careca e não tinha cabelos, o outro os tinha atrás da orelha e usava óculos.

- Prazer, Costinha, disse Costinha.

- Meu nome é Genésio, mas pode me chamar de Gené, respondeu Genésio, também conhecido como Gené.

Não se viam, fazia parte do ritual; deviam ficar com suas costas encostadas, isto é, um de costas para o outro, sentados no mesmo banco comendo açúcar. Comeriam o máximo que pudessem até que o tempo se esgotasse; o tempo seria medido por uma vela, quando sua chama se extinguisse, veriam qual dos sacos estava mais vazio, valendo também, como prova extra, o saco que estivesse menos cheio; o vencedor seria decretado, então.

Os dois velhos e a vela estavam lá, assim como os sacos de açúcar, o banco, o chão e as paredes da cabana. Daquelas bem rústicas, a cabana era destinada anualmente para o rito; com paredes de madeira grossa e um telhado de palha bem acabado, ficara famosa desde sua construção, quando o primeiro velho que lá entrara de lá não saíra. Ainda morava no mesmo canto da casa, ao lado da menor janela, e, com olhar absorto fitava os dois recém-chegados. Era ele quem substituiria por sacos cheios os sacos vazios, era ele que era barbudo e também era ele quem não tomava chá. Não que alguém ali fosse tomar chá no momento.

No momento só havia esses três velhos e a vela, ali; e um cachorro verde.

Sim, porque cachorros verdes existem, mas esse era pequeno como um cachorro que não é grande. Ele estava encolhido logo embaixo da cadeira onde o Velho de barba descansava, agora, de olhos fechados. Não fosse a luz da vela, não se veria uma mosca naquela cabana. Não que houvesse alguma.

Costinha foi quem deu a primeira colherada. Deixou que os deliciosos microgrãos lhe escorregassem pela garganta, levando aquela saliva adocicada para seu estômago amargo. Genésio quando ouviu que o outro já começara, pôs na boca logo duas. O gosto era bom, não há quem não aprecie a felicidade medida em gramas; logo que a língua aperta o açúcar contra o céu da boca, os lábios disparam um sorriso involuntário, irresistível. Tudo é coordenado, os braços amolecem, as pernas ficam meio bambas; Gené quase que deixou a cabeça cair – lembrou, porém, que podia dar outra colherada, e depois viriam mais outras, e se convenceu de que perder a cabeça ali não lhe seria lucrativo. Costinha, grande puxador de papo, tentou desenrolar uma conversa e, ainda com a boca atolada dos cristais brancos, disse, como quem comenta sobre o tempo lá fora?

- Hum, esse açúcar é dos bons. Quer uma colherada, Gené?

Fôra esta uma das famosas provocações que transformavam Costinha em um famoso provocador? Genésio fingiu não ouvir e colocou mais uma colherada de açúcar na boca; o Velho, no canto da cabana, ou fingiu que não ouviu, ou não escutou nada mesmo. Muito pouco se falou até que o primeiro saco de açúcar, o de Costinha, findou. Era hora do Velho intervir, Ele dormia, todavia.

O cachorro, aquele verde, era o único responsável por algum movimento na cabana; ele que avisava ao dono a hora dele, o cachorro, comer, e o momento Dele, o Velho, se alimentar. Se mordia sua própria pata, era ração, se mordia o calcanhar Dele, era comida que devia ser consumida na cabana. Mas e para trocar o saco de açúcar? Morder o quê? Por vezes, acertar o lugar da mordida torna-se decisivo na vida. O pequeno cão havia sido um presente da mulher daquele Velho, mulher esta, conquistada à custa de muitos silêncios – que são, de longe, mais valiosos que imagens. Ela lhe dera pouco antes de morrer, poucos depois de adoecer, ela o amara. O cachorro a substituiu nas tarefas domésticas, e o substituía, agora, na função de substituir sacos de açúcar, ao levar um cheio para Costinha.

- E eu concluo finalmente – disse ele concluindo, finalmente -, eu nunca a amei! Fi-la entender isso aos poucos, muito lentamente, para que, quando compreendesse, já não pudesse mais me deixar. Sofreria por todos aqueles que foram duramente desdenhados algum dia por uma bela mulher. E eu afirmo, ela sofreu. Eu te digo...

Se nem Genésio, que comia açúcar, nem o Velho, que dormia, ouviam o discurso de Costinha, presume-se que seria o cachorro verde quem o escutaria, se este estivesse minimamente interessado em digressões de bêbado. Pois embebedados de açúcar estavam ambos os velhos carecas; o outro, o do canto dormia. O “do canto” presenciara acontecimentos demais em sua turbulenta vida, presenciara incontáveis vezes o sol nascer no desligar da noite, testemunhara mais de mil e duas tempestades e algumas milhares de brisas matinais. O do “canto”, agora acordado, observava interessado o que acontecia em sua cabana: metade da vela fora derretida pela chama; metade dos sacos de açúcar – que embebedam aqueles distantes da natureza – jaziam vazios nos pés dos velhos; metade do cachorro desverdeara.

- ... do cabelo. Admita-me, porém, Genésio. Se as mulheres não são objeto, por que se “empacotam” tanto? Por que continuam a ....

O Velho da cabana não era muito de ação mesmo. Já olhava com desconfiança o fogo que, da vela, digeria rapidamente a cera vermelho-esverdeada e, em um passo seguinte, se serviria das cortinas como sobremesa. Ninguém notara, ou calculara, que fogo se multiplica em contato com cortinas e afins; nem o Próprio, que fora quem o acendera; e que fora o único que não gritou por socorro, nem correu, nem mesmo se levantou, quando do anúncio do incêndio, pelas nada originais palavras de Costinha:

- Fogo! Socorro, fogo! Fujam, corram! Fogo!

Em poucos segundos, todos fugiram floresta adentro: Costinha, Genésio e as cinco crianças de Genésio – não mencionadas até o presente instante, por pura falta de ação dramática, ou por serem apenas figuração, ou mesmo por não exercerem papel algum na história. O certo é que todos fugiram e chegaram às suas casas em segurança. Impossível, contudo, é descrever o que se passou com o Velho do canto da cabana. A notícia, a mais recente que me chegou, mencionava o cachorro Dele do lado de fora da cabana, latindo para a porta, para o último morador da casa, em uma desesperada tentativa de cumprir sua tarefa – a de assistir o Velho, a de zelar por sua saúde até o fim. Lembro-me dos Seus olhos angustiados, naquilo que era o começo do fim da Sua cabana, e os olhos desesperados de seu servo verde, do outro lado das chamas. Ainda ouço, por vezes, o latido impotente que não ouvi daquele cão. Qualquer latido me estremece se noite for. E açúcar também, criei nojo de doçura; o doce maquia o verdadeiro teor salgado do mundo, a real amargura da vida. O doce faz o tempo acelerar, faz sessenta segundos somarem mais de um minuto, esquenta a água do banho, refresca a água do filtro. O doce azeda.

Enfim, não sei se Ele viu a milésima terceira tempestade, penso que sim. Eu? Eu sou o fogo, sou o filho do Velho. Sou o filho do Velho e o pai do incêndio; eu era a chama da vela. Eu sou o fogo que esquentou a festa e quem, queimando galhos no escuro, saiu pela floresta com os olhos lacrimejando. Ou matei meu Pai ou o salvei da inércia eterna.

Por ironia, daquela cabana, além das cinzas, restou caramelo e um cheiro de agridoce de melado. Lefratel