quarta-feira, outubro 31, 2007

Pão Puro Cansa

“Em um diário onde anotava seus pesadelos, ou a falta deles, Kafka sonha transformar-se na namorada, e vice-versa, até que a metamorfose pega fogo. No fim, tem dúvidas de quem realmente fora incinerado, se ele, ou ela. Muitos sonham com realidades impossíveis, para romper as grossas molduras da existência, mas minha vida real não é passível de sonho, já não me encaixo no quadro há anos. Quando durmo, durmo. Acordado, absurdos me acontecem. Um exemplo do fantástico do qual sou refém é minha ida à padaria. Todos os dias vou para lá comprar pão, todos os dias volto satisfeito, mas sem o pacote. Percebam o milagre da situação, não preciso multiplicar pães para me satisfazer: saio de casa, ajeito a camisa, viro a esquina, ando duas quadras com as mãos nos bolsos, entro na fila e compro três (às vezes dois) pães de trigo, pago, não como nada, notem o detalhe, volto para casa caminhando as mesmas duas quadras (não haveria razão para mudança do itinerário), viro a esquina e, quando chego, já não carrego pacote nenhum. Nunca como os pães no caminho, mas chego sempre satisfeito. Desconheço qual a parte do trajeto em que costumam sumir, nem me preocupo, sua função foi feita. Mãos vazias e barriga cheia. Por vezes, porém, me incomodo, tenho saudade de passar uma manteiguinha, ou uma geléia. Pão puro cansa.”
Morris clicou em “Enviar” e, satisfeito, atualizou seu blogue. “Iniciar”, “Desligar” e “Ok” e foi passear, deixando o computador ainda processando tantas ordens. Virou a esquina, continuou andando, duas quadras, depois virou a esquina de novo, virou um quadrado e foi rolando morro abaixo. Ao rolar, Morris foi perdendo suas arestas, seus lados, e acabou no formato de uma pêra.
Gláucio gostava de pêras, mas não o escolheu; escolheu a pêra ao lado, que vinha da Argentina e custava dois centavos a menos. Morris ficou abandonado na cesta de frutas velhas da feira. Gláucio, que também comprara arroz, voltou pra casa andando. Duas quadras antes de chegar em casa, virou a esquina e virou um quadrado e foi rolando morro acima.
Ao rolar, Gláucio viu a cesta de pêras e perdeu suas arestas até ser confundido com Morris. Com a mesma forma, porém com melhor sorte que o amigo, foi escolhido por Arnaldo na seção de frutas novas da feira. Morris continuou abandonado na outra cesta.
Arnaldo estava de carro e por isso foi direto para casa, em linha reta, sem virar em esquina nenhuma. Mas chegou em casa e virou as meias do avesso, para lavar no tanque, e virou pó de amaciante. Arnaldo então espirrou e espalhou seus restos mortais por toda a área de serviço. Enquanto Gláucio e Morris apodreciam, ele polinizava azulejos.
Enquanto uns sucedem anotando sonhos, outros não sobrevivem a se moldar em seus pesadelos, o máximo que se pode fazer, nesses casos, é manter um blogue, ainda que sem audiência, ainda que sem esperança, sem objetivo, sem acentos nem ponto final,