domingo, junho 18, 2006

Seu Gonzalo, o esquecido
Em uma manhã de domingo, como tantas outras manhãs de domingo que só começam à uma da tarde, Seu Gonzalo foi ao banheiro. Mas não foi direto; não foi sem antes buscar o jornal do dia seguinte na porta de casa; não sem antes se esquecer onde pusera os chinelos e se lembrar onde os colocara e tropeçar no momento em que encaixava um deles nos dedos errados. Seu Gonzalo ainda pegou um pacote de bolachas na despensa e, aí sim, finalmente, dirigiu-se ao banheiro.
Como não estava descalço, não percebeu o frio do chão, e acabou por se assustar quando sentou na privada e gelou a nádega direita - levantou rapidamente a esquerda assim que sentiu aquele gelo e só a desceu aos poucos, em etapas, depois.
Seu Gonzalo ia cagar.
Não tinha pressa, tinha um jornal todo para ler: seu jornal todo era constituído do caderno de esportes, a programação da televisão e as fotos, não exatamente nesta mesma sequência. Nesse domingo haveriam dois filmes bons (um do cara que se fantasiava de empregada num outro filme e outro duma empregada que se vestia de princesa e perdia um sapatinho), ambos na mesma hora; além de solucionar tal problema até as seis da tarde, teria a difícil tarefa de decidir se troca-ve, ou não, o Fantástico pela cerimônia do Oscar. Foi entre a análise minuciosa da tabela do Campeonato Catarinense e a do Paulista que Seu Gonzalo se lembrou que se esquecera de cagar.
Esquecera-se também de abrir o pacote de bolachas, o que, porém, era um problema muito menor, pois Sêo Gonzalo não havia propriamente se esquecido de fazer cocô, ele não se lembrava de como executar o verbo; não sabia mais como defecar.
Com a estranheza de desaprender o que nunca havia aprendido, veio um pequeno medo de aprender o que nunca antes fora ensinado. Seu Gonzalo começou por dobrar a barriga; dobrou a barriga, enrolou o estômago, o intestino, tentou amassar a bexiga, esticou as pernas. Nada. Deixou a coluna ereta, tentou empinar um pouco a bunda, prendeu a respiração, fechou os olhos. Nada.
Todas as partes do seu corpo eram saudáveis, só comia carne branca (e apenas nos fins de semana), tomava apenas suco e leite desnatado; não estava doente, nada doía. Perfeitamente normal. Mas qual era o músculo que deveria usar?, pensava, deveria ser um dos involuntários, mas como fazer voluntariamente um destes trabalhar? O próprio ânus ele conseguia abrir e fechar, mas, tal qual um olho em tempo de paquera, ele só piscava e esperava, nada além acontecia.
Pensou em deixar a tarefa para depois, contudo aquela necessidade não o abandonaria, ele estava com vontade gostosa de cagar e deveria fazê-lo agora, sob pena de ter de se contorcer todo no banheiro do trabalho no dia seguinte, expectativa nada agradável. No seu trabalho havia Seu Odorico, e dividir o banheiro com Seu Odorico era perigoso. Levantou as calças e foi correndo buscar um copo de água na cozinha, bravo, jogou o pacote de bolachas em uma prateleira, quem dera que nunca tivesse comido nada para nunca ter de fazer cocô. A água ajudou menos no problema do que a defesa do Palmeiras ajuda o goleiro, mas pelo menos o deixou mais tranquilo - o que não acontece com os zagueiros do seu time. A água de certo modo fora tranqüilizante, trouxera uma possível solução para os seus problemas, só beberia líquidos daqui por diante. Diante da aterrorizante perspectiva de acumular sólidos no estômago e nos intestinos até morrer, o fato de que ainda tinha o know-how de como mijar o reconfortou, só beberia líquidos dali por diante. E pensar que se desesperara quando calculou apenas mais três dias normais de vida! Com base que seu estômago estocava até três quilos de comida (a partir dali ele se sentia satisfeito e não conseguia sequer colocar uma última ervilha na boca), comendo uma refeição diária de um quilo o presentearia com mais setenta e duas horas de vida normal e quarenta e dois dias de sofrimento numa greve de fome forçada se começasse a praticar budismo e não assistisse propagandas de cerveja. Não que não pudesse tomar cerveja, é que a visão de uma chamava a vontade de comer amendoim; e amendoim estaria definitivamente proibido.
Pensou em Deus, pensou em deus e lembrou de amendoim e tentou desviar o assunto. Pensou em sua situação, sentado na privada sem saber o que fazer, e pensou novamente em Deus e se Deus gostava de amendoim. Seo Gonzalo estava com fome.
Ele estava decidido a ficar ali até resolver seu problema, ele era mais forte que sua impotência amnésio-defecativa, ficaria ali sentado nem que fosse até anoitecer, e já estava anoitecendo; e mesmo que estivesse anoitecendo, não sairia dali até a noite, e surpreendentemente já era noite e Seo Gonzalo já reconsiderava a idéia de deixar pra fazer cocô no dia seguinte, antes do trabalho, antes de Seu Odorico.
Lera os quadrinhos e a parte esportiva, leitura suficiente para um domingo, pensava, e aí teve a idéia mais genial da sua vida desde que descobrira como jogar ping-pong com a parede; tomaria laxante.
Considerando suas outras alternativas, era o futuro mais promissor que se apresentava, viveria tomando laxante. Não precisaria fazer esforço com os músculos involuntários lá-de-baixo, os dejetos apenas escorreriam livremente. Contando dois vidros de laxante e três cuecas novas por semana, o prejuízo por ser tão descuidado e esquecer como defecar não sairia assim tão grande, ao menos não lhe custaria a vida. E foi assim, com sono e sorrindo, que Seo Gonzalo se dirigiu para sua cama, amanhã voltaria ao trabalho com seus problemas bem encaminhados; tranquilamente tirou seus chinelos e se enfiou por entre as cobertas, não assistiria a programa algum, seu dia já fora estressante demais. Um domingo e tanto. Seu Gonzalo estava com sono e foi dormir.
Hoje já faz uma semana que Seu Gonzalo está dormindo, faz uma semana que ele não se apresenta para trabalhar e seus jornais estão empilhados na porta de casa; há uma semana atrás Seu Gonzalo foi dormir e se esqueceu de acordar.