terça-feira, março 27, 2007

Quanto vale?

INT / NOITE

Festa numa sala-de-estar, câmera fixa pega todos os atores: duas mulheres bebem vinho em um canto (A e B), três crianças jogam videogame (C, D, E), um velho sentado no sofá, fumando, conversa com uma criança (F e G), dois adolescentes emburrados em outro sofá (H e I) e mais dois casais conversam em pé, bebendo vinho, em outro canto (W e X, Y e Z).

Música constante, nenhum outro som de fundo, só as vozes de quem conversa em foco.

F: Sabe, querida, eu vou definhar logo... sem a minha Neuzinha...
G: vô... triste né. Foi viajar pra sempre...
F: Não foi viajar, não... Ela...

C: Morreu, eu vi que você morreu! É a minha vez!
D: eu tô vivo! olha ali, ele tá de pé na luta.
C: passa o controle, é minha vez! (brigam) Passa!

A: Então você passa lá amanhã, me busca no trabalho e vamos nessa exposição.
B: Isso, Cátia, não dá mesmo pra perder, não venha inventar de novo alguma desculpa!

W: Ai, desculpa, (vinho transbordou do copo)
Z: Não, não, que é isso...
W: Manchou alguma coisa?
Z: Não, não, só um pinguinho.
X: vamos lá lavar, já, que isso é difícil de sair. (X e Z, saem da cena)

H: Droga! Quero sair daqui, que coisa chata
I: Detesto reunião de família.
H: um porre.
I: Não vale nada.

A: A casa aqui não vale nada, na verdade, o que conta é o terreno.
B: quando o velho morrer vai dar briga então...
A: é, meu pai não fez o testamento ainda, ninguém sabe de nada...

W: Então, você não sabe?
Y: o que que eu devia saber?
W (cochichando): Teu pai tá doente, definhando, cara. Tua irmã que me contou.
Y: xi, já era... foi um agora vai o outro.
W: é, e diz que essa casa não vale nada.

C: assim não vale! sou eu, é a minha vez. Dá o controle! Sou eu!

H: sou muito burro de vir mesmo.
I: porre.
H: uma droga.

D: droga, puxasse o fio, desligou tudo agora.
C: era eu mesmo, não tava valendo.

Y: diz que vale um milhão.

A: ofereceram já dois milhões pra ele e ele não vendeu!

X e Z voltando
X: Eu não daria quinhentos mil nisso aqui
Z: você acha que não vale?

F: É essa família que não vale nada! Estão cantando de galo, mas já vendi tudo, doei a grana. Se quiserem arrancar dinheiro de mim vão ter que vender meus ossos!

H: uma merda.
I: droga.

D: porra, queimou tudo agora!
C: É a minha vez mesmo, era eu... era eu.

Fim.

terça-feira, março 20, 2007

Pode não se realizar, mas só a aventura de pensar ser possível já vale a viagem.

terça-feira, março 13, 2007

do mundo

1
Hieraquia entre iguais
promove falsas diferenças
mistificam-se poderes
multiplicam-se desavenças

2
Notas falsas de peso morto
matam a fome de pesos-plumas

3
Muito pequenas são as chances
de matar quem já morreu
desespero-me que alcances
a sombra do meu apogeu

4
sucesso e fama infundados em brancas tramas de ativos verdes,
motivações exemplares que cativam as massas,
mortes tão vazias e leves que nem números ostentam,
correria, correria, correria
o horror.

sábado, março 10, 2007

Um chafariz enlaça o céu
desdobrando continentes de nuvens
alvura ofuscante de calor
sobre os laços transbordantes de papel
sem bordas e sem sementes
cerro os olhos de esperança
frágil tempo que me impulsiona
à pálpebras finas e dormentes

quarta-feira, março 07, 2007

Guarda-roupas limpo

"Olá Paulo, você sabe que eu te amo, eu sempre te amarei."
(ui, horrível, REWIND) "Olá Paulo, você... REWIND. "Querido Paulo, Foforêncio, aqui, quem fala, é a sua amada, aquela que sempre vai estar ao seu lado, na pobreza e na riqueza, na saúde e na doença. Obrigado por fazer parte do resto da eternidade da minha vida; a surpresa dos anéis, lá no restaurante, foi linda. Adorei terem aparecido no meio do mousse de maracujá. Sorte que não os comi antes, né. haueahuea
(não, não, sem a risada. REWIND) - do pudim. Sorte que não os comi antes, né. "Amei sua supresa, mas agora é a minha vez. Roubei seu gravador, ache-me se merecer. Vou me esconder, encontre-me conforme as pistas que eu vou te dando. Venha até a cozinha, isso, tire os sapatos, veja a pia, veja como as panelas estão sujas, eu cozinhei para você. Oh, mas que pena, acho que não tenho travessa para pôr o pudim; onde será que você vai comê-lo? Ai, minha barriguinha está gelada, tá escorrendo um caramelo por aqui... Caaaalma, não vá com tanta sede ao pote; eu gosto de preliminares. Lave a louça, primeiro. Enquanto isso, eu canto para você. Um diaaaareia braaaanca, seus péés irão tocaaar, e ao molhaaaar seus cabeeeelos, na áágua azul do maaaar. Outra mais animadinha: o que ééé imortaaaaaal, não mooorre no finaaaal.
(Péssima, vamos manter o nível. REWIND) ááágua azul do mar. "Ainda não terminou? Tá demoradinho, hein. Falta só o liquidificador, aposto. Você sempre o deixa para o final. Outra então: Debaixo dos caracóis dos seus cabelooos, uma história pra contar, de um mundo tão distante... Deu foforêncio, pode deixar como está, já estou molhadinha, digo.. REWIND... como está, já estou com saudades.
(melhor, menos direto).
Então venha até aqui na janela, deixei um bilhete ali embaixo do vaso com a rosa linda que ganhei ontem, não, não, pera, vou colocar dentro do livro aqui ao lado, na página que o estrangeiro atira no árabe, aquela que discutimos tanto. Ainda acho que sem um motivo para o assassinato a história perde verossimilhança. Apoiei o livro no vaso, uma metáfora sobre literatura e beleza, ok? Comprei uma lingerie vermelha, como você sempre pediu, indiretamente, sempre, sempre pediu. Eu percebi, querido. Mulher percebe essas coisas, as mulheres têm muito mais poderes que vocês homens e suas vãs filosofias desconfiam. Estou fechando a janela, todas as luzinhas do prédio ao lado já se apagaram. Está anoitecendo, o trânsito, um caos. As pessoinhas-formiguinhas chegam mais rápido no fim da rua que os automóveis; você deve estar impaciente, né. Já imagina que tem alguma surpresa te esperando. Ah, ó. A Clara, do setenta-e-seis, do prédio ali da frente, lembra da Clara? Aquela minha antiga amiga de faculdade, que outro dia esbarramos na videolocadora, solteirona ainda, lembra, que mora no prédio em frente? Acendeu a luz; alguém veio visitá-la. Um amante? Hum... parece que vai ficar interessante, ela pôs apenas um robe, estava pelada, acredita? Foi abrir a porta, tcharararam... Um cara velho, de chapéu, com um óculos enorme entrou. Deve ser o pai. Não, não é o pai, não, fofuncho, um pai não agarraria a filha dessa maneira, não estaria com as mãos naquele lugar... Estão indo apagar a luz, com pressa, ela jogou o robe longe, ele tirou o chapéu... os óculos... PAULO!!
bum.
(quarenta e cinco minutos depois)
Paulo abre a porta, parece que assaltaram seu apartamento; móveis revirados, roupas esparramadas; não roubaram seu gravador, está jogado no chão, mas funcionando. Onde estava Júlia?
PLAY.
...mas agora é a minha vez. Roubei seu gravador, ache-me se merecer...
(cinco minutos depois)
...o estrangeiro atira no árabe...
(três minutos mais tarde)
Paulo chora, ex-foforunxo amargamente arrependido. Ela se fora. Fizera as malas; o guarda-roupas estava limpo.

terça-feira, março 06, 2007

: *******************
DICA, ainda te amo
Irresistivelmente
Cada vez mais e
Ainda assim pra sempre

Amor que nunca acaba
Indo a fundo se entocar
Nada finda como os dias
Destemidos a vingar
Amor, te amo, é profundo

Tenho em mim seu mundo
Ensinaste-me a voar

Amo a vista daqui de cima
Modelo de ser, és
O meu orgulho de amar
**********************

segunda-feira, março 05, 2007

A HISTÓRIA DE TERTULIANO JACOMEL

Tertuliano Jacomel morreu jovem e, justo por isso, morreu cedo. Seu pai, ao contrário, durou quase quatro vezes mais; viveu até os noventa e cinco. Foram noventa e cinco anos aborrecidos com a morosidade da vida na fazenda, ou da falta de. Com cinco fazendas acumuladas em oitenta anos de trabalho árduo na roça, o pai de Tertuliano cultivou seis mulheres, todas as seis ignoravam a existência de outra meia dúzia.
A família Jacomel tornou-se fértil, portanto, em descendentes; respondiam por cinquenta porcento do produto interno bruto da cidade, que via como uma reunião de família a sua câmara de vereadores, todos - menos um - assinavam o mesmo sobrenome (o único sobrenome Silva da lista não foi reeleito e ninguém se importou). O trabalho, ali, não exigia muito; apenas questões de divisão de verba e ordenação da preferência de licitações que animavam um pouco o ambiente. Salvo isso, calmaria.
A mãe de Tertuliano, Dona Rosa, sempre muito atenciosa, uma vez o perdeu no parque. Reuniu seus outros nove filhos e os contou, de cá pra lá e de lá pra cá, nove. Como não possuía dez crianças, tranquilizou-se com sua matemática; esqueceu, porém, que um deles era um primo que viera junto na excursão. Soube-se do paradeiro de Tertuliano através do seu grande amigo, e também primo, Aníbal Lucas Jacomel, que o encontrou na fila do banheiro das mulheres e ficou a vida inteira sem resposta sobre o que seu amigo estava fazendo ali, já que Tertuliano ainda era muito novo para pensar o que Aníbal Lucas pensava que ele não pensava. Nada grave, porém.
A cidade, Idiópolis, em Minas Gerais, prosperara vigorosamente até o domínio do clã Jacomel. Já fazia oitenta anos de história quando da chegada do primeiro descobridor e dali em diante, como uma esponja que seca e passa a ter seu tamanho sustentado virtualmente por ar, Idiópolis estagnou. Seus duzentos mil habitantes viram-se dominados por duzentos novos cargos públicos comissionados, criados pelos duzentos primos Jacomel tão logo atingiam idades economicamente ativas, que, para membros da família, começava aos quatorze anos.
O auge se deu quando o pai de Tertuliano completou oitenta anos, pois começou a exportar filhos e sobrinhos para as grandes metrópoles em face da saturação do mercado de trabalho em Idiópolis e arredores. A maior felicidade do velho fora o nascimento das irmãs de Tertuliano, Gilda e Cíntia, gêmeas desde os primeiros dias da fecundação. Vieram ao mundo iguais e, iguaizinhas ao resto da família, desenvolveram aptidões naturais para cargos públicos; foram Prefeita e vice, por duas vezes, de Idiópolis. Realizaram grandes obras para o longo prazo, como por exemplo: o chafariz, construído no inverno mas projetado para refrescar os transeuntes e turistas no verão (ainda não havia muitos turistas, é verdade, era um projeto de mais longo prazo ainda, para o próximo inverno realizar-se-ia uma feira de cachecóis, de todos os tipos e tamanhos e cores e texturas).
Sabe-se que Tertuliano foi músico, ninguém porém se lembra de que instrumento tocava. Morreu cedo, contudo, antes mesmo da inauguração da IdioTV, num sábado ensolarado, regado a muito vinho e batata frita. O primeiro programa a ir ao ar seria, é claro, o noticiário local; com dois colunistas jacomelianos já famosos na cidade desde a época do rádio: Cássio Jacomel Jr. e Irene Alves Idem.
No aniversário de quinze anos do canal, quinze anos depois daquele sábado, em uma festa da família, constatou-se que ainda brilhavam, doladodecá das câmeras, os Jacoméis.
As histórias, às vezes, salvam aqueles que não fazem parte dela, dando-lhes máscaras obscuras de honestidade, mas nunca falham em incriminar os que por ela são engolidos. Tertuliano morreu cedo, coitado. Teria vivido bem.
Uma monotonia ao som de circo ditava o ritmo de Idiópolis, que assim que ganhava o pão, fechava os olhos para a falta de manteiga. O bolor viciado tinha o doce do sufixo enganador da família dominante, e todos dali comiam.
Dona Rosa, na missa dos vinte anos da morte de seu único filho que não vingara, chorou apenas em virtude do grão de areia que lhe dificultava a visão da turba de familiares comissionados, todos reunidos em virtude do feriado municipal, criado vinte anos antes. Dona Rosa ainda se incomodava com o cisco quando, na porta da igreja, apareceu Aníbal Lucas, padre e atrasado, correndo para começar o sermão. Demorasse um pouco mais e seu irmão José, padre e pontual, tomar-lhe-ia o lugar.
Prolongo-me, contudo, demasiadamente na história da família e da cidade de Tertuliano, descuidando do objeto de minhas pesquisas em Idiópolis, onde morei os últimos quatro meses. Voltei mais cedo que o programado, foi difícil suportar a mornidão do imutável, sufoquei. As ruas lá têm nomes de políticos, e os políticos têm Jacomel nos nomes, e, nas ruas, quem não é político anda a pé. Infundados são os rumores do fortalecimento de uma oposição, pois esta já existe - mas com os mesmos itens da cesta básica, reformulados apenas, arrecadando os descontentes. Uma oposição à oposição se oporia a quê?
Minha pesquisa fluiu pouco, obtive os seguintes resultados: Tertuliano parece que foi músico e parece que morreu com vinte anos, com tolerância de dois, para mais ou para menos - pois seu pai não sabia exato se ele nascera antes ou depois das gêmeas. Das gêmeas, porém, sabia que Cíntia nascera antes, o que não tinha relevância para meus estudos. Interessei-me pela história de Tertuliano por achar louvável sua abdicação ao fácil, mas meu porquê não interessa, já que o sujeito não possuiu verbos transitivos. Tertuliano, coitado, morreu cedo.
Talvez, contudo, o menor dos coitados.

quinta-feira, março 01, 2007

Salto sem pulo

Sentou-se no banco engordurado do trem, de cabeça baixa, hesitava em encarar quem quer que estivesse ao seu lado, ou à sua frente. O chão balançou e reclamou de ser deixado para trás, apitou tentando chamá-la de volta; a marcha imperial da partida começara e ela nem se dignara a levantar o olhar - se o fizesse, veria que estava em frente ao que tentara abandonar minutos antes, se levantasse os olhos e mirasse o espelho que lhe enfrentava obstinadamente, veria que a perseguia ainda aquilo do que fugia; enxergaria que seus olhos continuavam vermelhos, que o passado não descola com o simples pagamento de uma passagem de trem. Abriu a mão sobre o banco engordurado, esmagou-a contra aquele estofado fétido e viu que sempre estaria metida na merda.