quarta-feira, novembro 22, 2006

Ponte aérea Rio-São Paulo

Lembro-me bem, quando morávamos em Manhattan, aquele dominó de edifícios, prontos para tombar, um seguido do outro, rodeados de águas calmas que reluziam na tocha da Estátua da Liberdade, eu me lembro bem das suas histórias, uma em particular, do velho pescador de Floripa.
Era um velhinho ainda muito saudável, certamente pela dieta salgada de mar com tainha e farofa; morava na Barra da Lagoa, em uma pequena cabana perto da praia, e saía para pescar todos os dias antes das quatro da manhã. Saía pelo oceano com todos os sonhos que não tivera tempo de sonhar durante a noite, voltava só após a margem de lucro da empresa ultrapassar o custo inicial do seu trabalho, o que, por vezes, durava mais de um dia. Sofria muito com seu barquinho em mar revolto e com a falta dum companheiro para suas aventuras: seu filho, o personagem que lhe faltava, viera estudar aqui em Nova Iorque, na zona sul, Wall Street.
José Antonio Assis era jovem, porém sedentário desde cedo. Veio à procura de emoções fortes no centro do mundo; andava pela Park Avenue e pelos arredores do Central Park mirando seu futuro nas coberturas em pequenas ruas onde era proibido buzinar, multa de duzentos e cinquenta dólares para quem perturbasse o sossego dos ricos lá em cima. Zeca, como era chamado por seus amigos de infância na Lagoa da Conceição, onde brincavam de quem atirava mais longe blocos de areia feitos às pressas, Zeca estava quase para alcançar o topo; ia ser promovido numa famosa corretora da bolsa de valores mais pop do planeta. Agora, caminhando em calçadas de bueiros fumantes, atravessando ruas de carros massificados e monocoloridos, pensava em suas vitórias sobre Júlio, no arremesso de areia do primário.
Júlio, seu melhor amigo desde-nunca-até-pra-sempre, não vencera; desistira depois de três fracassados vestibulares para educação física, tornara-se pintor de paredes dos pseudo-arranha-céus da mini-Manhattan em que a Beira-Mar de Florianópolis se transformara. Isolado sobre andaimes, sonhava com seu ex-futuro de professor, rodeado de crianças e sorrisos; preenchia as rachaduras das reformas descuidadas com a concentração da tinta diluída em suas lágrimas de cachaça. Por vezes visitava o pai de Zeca, o velhinho da Barra da Lagoa que lhe fornecia a água-ardente com que ardiam sua miséria e decepção. Lembravam os dois, com os dedos dos pés filtrando a areia da praia, em fins de tarde sem rodada de futebol, lembravam os dois do verdadeiro motivo perseguido pelo Zequinha nas árvores de natal nevadas da Grande Maçã.
Lídia Alves de Britto, pernas brancas e maçãs do rosto rosadas, grandes olhos verdes e pequena disposição para a mediocridade, conseguira uma vaga na Universidade de Columbia, no centro de uma ilha no exterior, com uma lagoa não tão bonita quanto a da ilha de Santa Catarina, sem tantos relevos também, mas com mais brilho, mais vida, mais morte e maiores salários. Lídia logo fez amigas por lá, nem tomou conhecimento de Zeca, que lhe mandara dois emails avisando que também se mudara e ainda esperava resposta: Krista, Stacy e Mary Worthwhite acompanhavam-na em sua energia pelas avenidas numeradas, paralelas e com destino definido; as quatro amigas sempre esbarravam na bêbada Broadway, que contrariando todas as outras ruas da cidade, vinha boêmia e espaçosa quebrando-a em diagonal, de nariz empinado, sem pedir licença.
Foi desses show que conheceram Michael Redcliffinson, que apesar do nome, era brasileiro. Maikon Redincliffensown Silva, como vieram a saber minutos mais tarde, ganhava a vida em curtas apresentações da africano-brasileiríssima capoeira em esquinas e becos desde o Brooklin até a o West Upper Side. Maikon contou que nascera no Morro da Cruz, em Florianópolis, do-you-know? in South Brazil?, e conseguira passar facilmente pelo muro que dividia a América do Norte da América do Norte que comia burritos; começara a jogar capoeira no Campeche, do-you-know, very-nice-beach, onde surfava com o Juca, o Fábio, o Lucas e o Rodolfo, que chamavam de Camaleão porque todo dia vinha com uma cor diferente da praia e que ainda queria se aposentar na sua cidade natal, só tinha que acumular mais tantos dólares para pagar a reforma da casa da mãe que já estava bem velhinha.
Marta Rosa da Graça estava, realmente, bastante idosa, contudo não se deixava entregar para os livros de história, persistia firme e, agora, namorando. Passeava por Canasvieiras, balneário norte de Floripa, praia bem tranquila, quando viu Seu Armando, recolhendo o barco até a areia, sozinho, sem um companheiro. Marta sentou-se ao seu lado, ambos filtrando areia com os dedos dos pés, apenas sorriam vendo o sol se pôr como coadjuvante da ambição dos homens. Ambos sem filhos como companhia, Armando contara que morava na Barra da Lagoa e seu único filho estudava finanças nos Estados Unidos e trabalhava em uma torre muito alta lá. Diz que as pessoas ficavam do tamanho de grãos de areia e que o horizonte tinha o formato de uma vara-de-pescar lá de cima. Marta achou muita coincidência e disse que seu filho também trabalhava na Big Apple - que significava A Grande Maçã, explicara-lhe, certa vez, Maikon -, mas que ele fazia shows de dança em grandes teatros, ia se apresentar na Broadway um dia, mas que voltaria no ano seguinte para ajudar na reforma da sua casa e traria sua nova esposa - casara-se recentemente com uma linda brasileira que morava na Fif Évenue.
Numa tarde quente, sob a figueira da Praça XV, três simpáticas americanas comiam coxinha à sombra e eram interrogadas por diversos uer-ariu-from e iu-laik-mi de pescadores ávidos por carne branca, o casal que as acompanhava fora dar uma volta naquela árvore centenária enraizada em variadas superstições; Seu Armando esperava seu filho que não era bumerangue e Marta Rosa consolava-o com dicas dos Evangelhos de João. Quanto a Júlio e Zeca, posicionados em tão distantes latitudes do globo, mas em ilhas de cores semelhantes, bem, eles viam a vida do alto, pairavam sobre os problemas alheios e perdiam seus próprios objetivos.
Lembro-me bem dessa estória Antoine, queria que você me contasse outras desse tipo, savez-vouz, mon cherie, je t´aime plus que tout, e adoro ouvir sua criatividade aflorar assim de improviso, parece até que são reais esses seus contos. Hoje na festa do Jacques Constant, em Montparnasse, você podia tomar uns vinhos e divertir-nos com suas invenções, hein? Todos te adoram tanto, somos tão felizes...