segunda-feira, novembro 20, 2006

Memórias de uma xícara

Olá, meu nome é Frágil, eu mesmo que me batizei; não por ser frágil, mas porque, na minha lembrança mais antiga, quando vivia em caixas de papelão com muitas outras xícaras, essa palavra era a mais popular, escrita por todos os lados; eu gosto de ser popular, então, quando me mudei pra cá, resolvi que seria conhecida como tal - não que eu vá ficar para a história, nem que meu nome será muito lembrado quando eu passar desta para uma melhor, simplesmente porque me soa muito familiar.
Dessa espécie de útero, passei para uma casa muito feliz, com um casal que parecia não se conter, estavam sempre sorrindo, sempre se pegando e fazendo brincadeiras. Minha prima, que trabalha num restaurante e entende mais de relações humanas do que eu, diz que, provavelmente, eram recém-casados. O certo é que viviam se pegando, não aproveitavam muito a casa espaçosa que tinham, ou tinham algum problema de geografia, pois sempre se esbarravam, se agarravam, por todos os cantos; parecia que tentavam entrar um no outro, não sei se isso era o tal de amor que minha prima fala, eu acho que era briga. A gente mora em um loft, sem divisórias entre quarto, sala e cozinha, então posso ver tudo que se passa na casa, o que me distrai da minha vidinha pouco movimentada. Se ao menos eu entendesse a língua deles... teria um pouco mais de interação com os humanos, minha prima diz que vai me dar um curso de português, ela é muito inteligente; ela é muito viajada, trabalhou em diversos bares e restaurantes já, serve um cafezinho muito apreciado aqui na capital. Ela me conta muitas histórias dos empregos por onde passou, sempre por ouvir o que é falado nas mesas, após o almoço, ou mesmo no café-da-manhã. Já serviu muitas pessoas importantes, até o próprio presidente, que tinha problemas ao segurá-la sem o dedo mínimo. Ouvia diálogos perigosos até, negócios obscuros sendo fechados na sua frente, propinas e ameaças, para ganhar a concorrência de uma licitação chegavam a pagar quinhentos mil reais por fora, não sei como tiravam algum lucro da obra depois de tão substancial desembolso logo no início; prostitutas tinham de vários valores, minha prima é boa de guardar números, é muito inteligente: o preço era proporcional à quantidade de roupa que vestiam, se as saias eram muito curtinhas, vinte reais bastavam; se fosse discreta e de bons modos, e loira, era preciso quatrocentos reais só para começar a conversa.
Minha vida aqui dentro da prateleira é por demais monótona, e não gosto dos meus colegas de quarto, são muito fechados, não se relacionam; ninguém fala nada, ninguém toma iniciativa de nada - mesmo se soubessem que o mundo acabaria no dia seguinte, duvido muito que se exaltassem ou movessem um dedo pra fazer qualquer coisa. São muito manipuláveis, sem atitude. Eu também sou um pouco assim, mas só por fora; se pudesse, estaria em empregos empolgantes como da minha prima, servindo café de todos os tipos, sendo recolhida das mesas, lavada, secada, voltando para a mesa seguinte, ouvindo mais alguns parágrafos de conversas, sendo recolhida, relavada, ressecada, e, de novo, mais café, mais diálogos, rostos, sorrisos, brigas, vento, sol, café com leite, capuccino, sabão, água quente, pires, colher, chá, cabelos chamativos, roupas da moda, uma ou outra queda sem me quebrar - minha prima já caiu duas vezes no mesmo dia, mas uma, para sua felicidade, e desgraça da cliente, foi no colo de uma mulher, manchando de suor negro seu alvo vestido burguês.
Eu também servia café, às vezes na cama; quão incontáveis foram os cafés-da-manhã de surpresa na cama, dele para ela, dela para ele, e sempre aquele sorrisinho de não-acredito!-ah-brigado!-te-amo de quem mal acordara. Eram meio bobos os dois, só tomavam chá com açúcar. Onde já se viu? Que sacrilégio... Mas eram simpáticos, minha prima diz que é sempre assim no começo, que já morou com um casal na mesma situação e que um ano depois estavam separando os bens. Foi depois disso que ela estudou e aprendeu a língua dos humanos e conseguiu vários empregos em restaurantes. Vive me dizendo que é o caminho, quem não estuda nunca terá o gosto de um expresso fresquinho, fica condenado a servir café aguado feito em casa a vida toda.
Eu queria mesmo entender o que falavam os dois, teria me ajudado muito a interpretar os infortúnios que cumularam na desgraça final, eu desejava o bem para os dois, sempre torci para que o relacionamento continuasse estável, mas tem uma coisa que minha prima chama de entropia, é uma constante tendência para o caos, uma força contra a qual, ainda segundo minha prima, os humanos lutaram durante toda sua história, tentaram formar impérios que se destruíram, formar filosofias, revoluções e conceitos que se desfazem com o tempo, comida estraga, a saúde se corrói, a felicidade se cansa - nada vinga no mundo, a explicação é essa entropia.
Novamente, e espero não estar me tornando muito repetitiva, segundo minha prima, o que a mulher segurava era uma arma e, como uma das maiores agentes da entropia, era uma destruidora de lares, exterminadora de famílias. A mulher apontava a arma para o peito volumoso do marido, e tremia, gesticulava nervosamente e gritava, parecia ter muito ódio; ele certamente fizera algo muito grave, pois a mulher era muito simpática no dia a dia.
Foi o dia mais emocionante da minha vida, e o mais triste, é chato quando as coisas acabam mal. A mulher chegara mais cedo que de costume, trouxera uma caixa junto com ela; pensei que fosse mais um presente, ela sempre trazia presentes para ele, acho até, se me permitem a ousadia, dizer que a mimava em demasia. Não se chega no doce perfeito simplesmente adicionando colheres sem fim de açúcar, é preciso um pouco de amargura e contenção, o exagero enjoa. O coitado do marido chegou um pouco mais tarde, fora cortar os cabelos, que ainda continuavam compridos. Eu nunca entendia, se eles pagavam tanto para alguém fazer o serviço, conta minha prima que o preço varia de dez a oitenta reais, porque já não cortar de verdade? Essa é outra impressão minha, a verdade e o racional não os interessa, são meio fúteis, a ponto de seguir tendências ilógicas porque todo mundo irracionalmente já as segue. Chegou feliz, esperava que ela notasse a mudança, deus-do-céu eu notei! mas só porque não tenho mais nada com que me preocupar; é humanamente impossível exigir que ela notasse um dedo a menos no meio daqueles dois quilos de cabelo que ele escorava sobre os ombros. A felicidade durou pouco, nem se beijaram, ele deixou suas coisas na mesa da cozinha e foi tomar banho, sem lavar a cabeça para não estragar o novo penteado. Veio com a toalha ainda enrolada, ainda sorrindo, mas a mulher não respondia a nada, imóvel, no sofá da sala. Ele desistiu da comunicação, pegou manteiga e leite na geladeira, pão e achocolatado numa estante e um copo ao meu lado. Comia em silêncio, ambos comiam em silêncio: ele tentando engolir seu pão, ela, sua raiva.
Minha prima tem inveja, queria ter visto todo o desenrolar da cena, como começaram a discutir, entender os pontos, analisar os argumentos falhos de cada um; ela sabe avaliar a mentira pela expressão facial das pessoas, descobriria facilmente quem falava a verdade e quem a ocultava. Mas sou uma simples xícara provinciana, não entendia muito, apenas assistia; minha única interferência ali seria se alguém quisesse tomar um café, ou chá, mas o momento não era próprio nem para um capuccino; é para isso que eu sirvo, para servir mãos alheias, transportar líquidos de cá pra lá, não fui feita para salvar vidas. Meus companheiros, atrás do vidro que nos isolava da cena, continuavam esnobes, pareciam assistir a um filme onde o sofrimento não é sofrimento de verdade e, mesmo se fosse, não importaria tanto de qualquer maneira. Era lá, no mundo deles, no exterior, noutro continente, no Oriente-Médio, na China, mais longe, noutra dimensão. Não afetava ninguém ali e isso bastava.
Eu continuava angustiada, mas faltou-me habilidade, força, experiência de vida, faltaram-me pernas para correr até lá, faltaram-me braços para agarrar a entropia, ou coragem para me jogar na frente da bala, morrer mártir de uma vida fosca.
A mulher atirou no marido - minha prima diz que essas coisas acontecem por causa da traição, que isso é muito grave - e depois atirou contra a própria cabeça. Uma mancha vermelha tomou conta de todo o piso, fazendo uns desenhos estranhos, com vários braços se espreguiçando, pareciam cansados. Era um líquido estranho, nunca vira nada parecido, era um líquido que respirava vida, rubro de vergonha de aparecer para o mundo, ali não era o seu lugar.
Uma semana depois entraram várias pessoas com gestos estranhos, segurando o nariz para não cair; tiraram fotos, balançaram as cabeças, acenavam pra cá, apontavam ali, mais fotos; muitas pessoas se aglomeravam na porta, sem poder entrar, parecia que faziam amor, pareciam o casal nos seus tempos mais felizes, se esfregavam, empurravam, tentavam entrar um no outro e esticavam suas cabeças. Os corpos foram recolhidos, não sei se queriam assim, mas juntos, um sobre o outro, sumiram da minha vista. Todos aqui da prateleira, ainda novinhos, foram vendidos para o restaurante da minha prima, ela afirma que foi quem conseguiu o contato e reclama uma comissão, mas vai ter de entrar na justiça para receber, e isso demora muito. Eu comecei uma rotina mais enérgica: acordo as seis da manhã, já sirvo café para clientes da padaria, lavam-me em máquinas grandes que jogam um vapor muito quente, é a melhor parte, são só cinco ou seis segundos dentro dessa sauna, só pra soltar a gordura mais persistente, mas saio tão renovada, tão seca, uma sensação muito boa mesmo - dizem até que emagrece. Depois volto para a mesa, ouço as pessoas lendo os destaques dos jornais umas para as outras e os "ahs" e "ohs" que vêm a seguir, sou novamente lavada, volto e ouço mais bons-dias por todos os lados, pássaros cantando, as pessoas como formigas começando uma correria, têm muita pressa, fazem coisas muito importantes mesmo, é muita responsabilidade manejar o mundo. Tenho um descanso de umas duas horas até o meio-dia, onde começo a trabalhar insanamente, pulo de uma mesa pra outra em minutos, o cafezinho de depois do almoço é muito rápido, nem passamos pela sauna, só passam uma água rapidinho e nos mandam pro serviço de novo. É nessas horas que ouço as histórias mais curtas e as mais interessantes do dia, ou eu que as torno interessantes, pois tenho que imaginar seus inícios e seus finais. Quando eu e minha prima vamos para a mesa juntas, rimos muito, troçamos com as caras que as pessoas fazem queimando a língua, sempre se queimam, nem parecem muito inteligentes, não.
Minha prima me disse, só agora, aqui na mesa de dois advogados barrigudos, que ter peito volumoso e cabelos cumpridos é característica das mulheres, que os homens tem peitos retos e, geralmente, cabelos curtos. E eu que pensava que era o contrário! Eu sou bem burrinha mesmo. Bem, queria desculpar-me pelo erro, então na história dos meus antigos donos, foi o homem que matou a mulher e ela quem traíra, o que também é normal que aconteça. Mas isso não muda muito as coisas, explica minha prima, a culpada mesmo continua sendo a entropia.