sexta-feira, novembro 10, 2006

Paixão proibida

Eu ainda acredito no amor e ainda acredito que ter fé e crer com devoção nos impulsione para mais perto de nossos objetivos; meu olhar perdido encontrou um, num bar, na beira da Lagoa. Cátia, como vim a descobrir naquela mesma noite, não percebeu ser observada, ser comida com os olhos. Falta-me um pouco de atitude, não tenho costume de me aproximar das pessoas e iniciar uma conversa, quanto mais um flerte. Prefiro esperar que venham até mim. Com Cátia foi diferente, eu tive de tomar uma posição; dirigi-me até sua mesa e, sem dissimulação, perguntei do jeito mais cafajeste e que sempre reprimi:
- Oi, tudo bem? Você vem sempre aqui? Legal esse bar, né?
Em um bar de cadeiras vazias e garçons desanimados com a limpeza dos saleiros, aquelas perguntas surpreenderam-na: olhou de canto, interrogativa, verificou se era para ela mesmo que se direcionavam tantas questões, sorriu, arrumou os cabelos e me convidou para sentar com um gesto rápido.
- Oi, não, não venho muito aqui, e você?
Olhos decididos e alegres me fitavam, havia sido muito fácil; eu não esperara tão agradável acolhida. Uma mulher tão bonita, tão bem vestida e maquiada, com pernas lindas, um corpo magro e escultural, sapatos combinando com a bolsa, todos os detalhes perfeitos, a graça ao arrumar o cabelo; uma mulher tão bela torna muito difícil a aproximação, tenho amigos garanhões que confirmam, forma-se um abismo em volta desses seres perfeitos, ou elas que são muito difíceis, ou o muito difícil é arrumar coragem para dar o salto em direção ao impossível. Eles me dizem que bebida ajuda, mas eu nem havia bebido e tudo parecia encaminhado. Tentei sorrir de volta, sentei-me ao seu lado e conversamos a noite inteira. Foi incrível, parecia que nos conhecíamos desde a infância, discutíamos todos os assuntos, desde moda até futebol, passando pela canalhice dos homens e pelo odor das mulheres apaixonadas. Eu sentia uma fragrância de sentimentos, mas vinha de mim, eu amava Cátia; amava todos os seus gestos, todas as suas confidências, todos os tons do seu sorrir. Apaixonara-me no primeiro instante, uma atração muito profunda, encontrara o par perfeito; sempre faltara um algo mais nas pessoas com quem me relacionara até ali, mas aquela mulher era demais.
Lógico que não demonstrei, tratava-a como a uma amiga querida, uma prima, uma irmã; ganhei sua confiança entre taças de vinho tinto, ela parecia solitária e se abriu comigo, expôs todos os seus problemas sem temor algum; bebíamos sem parar e brindávamos o tempo todo. Não, não a deixei se embriagar, também eu não passei do ponto. Ela esvaziou a última taça e me convidou para a sua casa, em plena consciência; teria antes porém de buscar sua filha (ela tinha uma filha!) na casa duma coleguinha, eram quase nove horas e ela certamente já terminara seu trabalho escolar. Pode parecer estranho, mas a idéia de uma filha me animou mais ainda. Cátia era separada e eu adoro crianças.
Karina tinha nove anos e era muito esperta. Entrou no carro saldando-me com grande afeto e, recusando-se a sentar no banco de trás e ficar de fora da conversa, acomodou-se no meu colo e demonstrou que faria um escândalo se alguém tentasse tirá-la dali. Cátia aceitou fingindo submissão aos desejos da soberana, eu não reclamei e disse não me importar. O peso de Karina no meu colo tirava-me a concentração da conversa com Cátia, não sabia mais se falávamos do problema de ignição do carro, se discorríamos sobre a barba de Sócrates ou se discordávamos do gol mais bonito de Pelé; aquele ser inocente sentado no meu colo, roçando meu peito, trazia-me uma sensação inédita, um frenesi, eu tremia. Abstive-me um pouco dos assuntos, acho que discutiam de uma nota ruim de Karina, enquanto se digladiavam em argumentos, eu fitava o ombro reluzente da menina, lisinho, seus bracinhos esvoaçando pelo ar tentando provar que a professora que fora má, suas pernas se batendo contra minhas canelas, sua saia deixando sobrar umas perninhas finas na paisagem.
- Chegamos, você pode passar minha bolsa, por favor? Pediu Cátia.
- Claro, claro, aqui, ó, não, essa aqui, ops, essa, tó. Eu disse tudo isso num atrapalhamento incompreensível para as duas, eram muitas bolsas, muitos pensamentos.
Entramos no apartamento das duas, dado pelo ex-marido como presente de casamento, sentei-me no sofá. Olhei em volta, Karina já tinha sumido para o quarto, eu já sentia sua falta. Aquela alegria familiar me empolgava. Cátia voltou com uma garrafa de uísque e dois copos com grandes pedras de gelo. Olhava-me nos olhos, era franca, falava-me de suas aventuras com namorados naquele apartamento, ríamos em conjunto; eu evitava tocar em qualquer assunto mais picante, ela que começava; eu escondia meus sentimentos, eu a amava, amava sua filha, amava seu apartamento, suas roupas, eu não podia tocar no assunto: sabia que, se o fizesse, o encanto se dissiparia. Nunca me dei bem em conquistas, não era agora que eu estragaria tudo com alguma cantada fajuta - já bastava aquele "você vem sempre aqui" do início.
Cátia tirou seu casaco, ficou descalça e sentou-se de frente pra mim, no mesmo sofá; apoiou sua cabeça sobre o braço, seu joelho ingenuamente tocando o meu, eu ofegava: discutíamos sobre reggae e sopa de cogumelos quando Karina chegou, escovando os dentes, para nos dar um beijo de boa noite. Veio de pijama e chinelos trocados, apoiou-se sobre minhas coxas e me apertou como se eu fosse sua mãe, ou seu pai. Voltou correndo para o quarto tropeçando e dando risada da dor que sentia. Eu tropeçava no sentimento que, lá dentro, me doía. Eu queria me abrir, falar tudo para Cátia, dizer que a amava, fazer planos em conjunto de formar uma família, casar, ter outros filhos, adotar aos montes, viajar, trabalhar juntos. Eu queria tocá-la, acariciar seus seios, beijar sua boca, descobrir o conhecido no mistério do seu corpo; mas era impossível, eu não podia. Despedimo-nos horas depois, ela bêbada, eu não. Combinamos de nos ver no dia seguinte, no fim da tarde, abraçamo-nos e trocamos beijos, no rosto.
Voltei para casa em desespero, aos soluços, encontrara um anjo; quando estamos tão perto assim de Deus, acredito eu, é doloroso ir embora; eu chorava feito criança. Acelerei o carro, passei sinais vermelhos sem hesitar, se morresse, morreria infeliz; melhor hora para morrer não há. Cessaria minha angústia na solidez dum poste, no fim de uma curva, no rosto assustado de alguém na contra-mão; tudo para findar os saltos-mortais que meu coração dava, para demonstrar que ele era humano e passível de fim. Afoguei-me no travesseiro, eu tremia, sentia-me quente, com febre. Dormi como uma pedra rolando morro abaixo, só que quem rodava era o teto; eu bebera, sim, um pouco demais.
A constância alivia e diminui o impacto do novo, porém, se o novo nos parece familiar, a rotina o intensifica e o coroa com uma aura maior de desejo, é assim que eu penso. Nas duas semanas seguintes, saímos quase todos os dias, Cátia sempre curiosa e contente, eu sempre com a certeza de que ela era a mulher certa para mim, e sempre com o medo da aproximação do momento em que eu me declararia. Ela, se desconfiara, não demonstrou em momento algum, eu nunca dei em cima dela, mas também não discutíamos minha sexualidade - se eu era gay, por exemplo -, o que me leva a crer que ela acreditava-me hétero. Do mesmo modo, jamais demonstrou desconforto com nossa amizade. Talvez ela estivesse realmente interessada e, pelo compromisso social das mulheres de nunca dar o passo inicial, sob pena de parecerem fáceis, ela não abria o jogo.
Buscávamos todo dia Karina no colégio e almoçávamos no apartamento delas. Depois do trabalho eu voltava para lá e continuávamos conversando, jogando e brincando até tarde; formávamos uma família feliz e eu resolvi partir para o ataque. Já haviam se passado quase vinte dias da nossa amizade, aquilo tinha de se tornar o "algo mais", ou devia terminar por ali mesmo. Eu não aguentava mais meus monólogos interiores ambíguos e indecisos, não suportava mais esconder tanta paixão dentro de mim.
Busquei Karina no colégio e levei-a para casa, Cátia chegaria mais tarde. Trocamo-nos no seu quarto, ela botou uma camisolinha que eu dera de presente; estava linda como a mãe, seus cabelos pretos espreguiçavam-se sobre seus ombros nus, sorria felicíssima para mostrar o quanto amara meu presente. Peguei-a no colo - ela adorava - e a coloquei na cama fazendo-lhe cócegas na barriga; eu queria Karina, eu queria um ser daqueles, um todo meu, saído de mim, queria poder ser mãe, queria urgentemente ser pai. Dei um beijo de boa-noite, desliguei a luz e fui para a cozinha preparar a janta. Cátia chegou pouco depois de eu terminar a arrumação da mesa: taças de cristal reluzentes; dois tipos de facas, uma para o peixe e outra para a salada; guardanapos de pano cuidadosamente dobrados; flores ornamentavam o centro da mesa; e velas, muitas velas. Olhou-me com espanto, como sem entender o porquê de tudo aquilo, mas logo sorriu e me abraçou já começando todo o relato do seu dia, esquecera a bolsa no ônibus e teve de sair correndo duas quadras para alcançá-lo, tivera de enfrentar duas filas enormes nos bancos, comprara um rímel novo, estava com uma bolha no dedão do pé e estava um pouco alta por causa do rum gratuito de um coquetel que... Eu peguei sua mão, acariciei seus dedos... ela parou por um momento, mas não me deu muita atenção, continuou falando que o rum estava uma delicia e que misturaram um pouco com uísque e... Deslizei minha mão sobre seu braço dourado pela luz das velas, beijei seu ombro, puxei-a com força, beijei seu queixo, toquei seus lábios; ela parecia não compreender onde estava. O beijo que eu tanto esperara durou uma eternidade, parecia não ter fim, mas sei que durou poucos segundos.
Senti a respiração de Cátia ofegante, empurrou-me delicadamente afastando seu rosto do meu, olhou-me intrigada. Fingindo nada ter acontecido, comemos uma salada horrível e um peixe intragável. Conversávamos apenas obviedades, assuntos levianos, ela se ofereceu para lavar a louça; despedimo-nos com um aceno. Ainda quase esqueci minha bolsa lá. Voltei chorando, como da primeira vez. O sonho terminara. Recusei-me a tirar a maquiagem antes de dormir, já estava toda borrada pelas lágrimas mesmo. Cheguei em casa com os seios doendo, eles também choravam, meu cabelo estava horrível, eu estava acabada. Frustrada, derrotada. Eu queria ser a mãe de Karina, a mulher de Cátia, queria poder dizer ao mundo que isso é possível. Tenho estado muito ocupada no trabalho nas últimas semanas, Cátia não me ligou mais, eu também não quis forçar e continuo apenas a esperar; espero que um dia ela ligue e entenda meus sentimentos, ou pelo menos me perdoe por tê-los misturados à nossa amizade, mas parece que perdeu o encanto, não seria a mesma coisa; espero sua ligação apenas como amante, apaixonada que estou, não quero sua amizade, far-me-ia mal, eu continuaria sofrendo. Acredito firmemente em Deus, mas não sou daquelas que acreditam que ele seja perfeito; penso eu, ainda angustiada com tantas emoções do último mês, penso eu que se ele fosse realmente perfeito, teria me dado um pinto ao nascer.