segunda-feira, novembro 13, 2006

Exploração da Força de Trabalho na Terra do Kapital*
Ou
Deutscheschwarzarbeitsunternehmungen
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Introdução

O governo alemão investe pesado contra o Schwarzarbeit, literalmente “trabalho negro”, todos os anos no país de Karl Marx, principalmente contra a grande imigração de trabalhadores sazonais vindos de nações destruídas por guerras, ou em fraco desenvolvimento do leste europeu, que trabalham irregularmente durante alguns meses na Alemanha para acumular um dinheiro suficiente no intuito de sustentar parentes, a maioria desempregados ou mal-remunerados, em seus países de origem. Conheci alguns destes exemplos em minha viagem à Europa no início deste ano, exemplos estes, que relatarei no presente trabalho visando retratar certa exploração do exército de reserva internacional, em empregos com as mínimas condições de trabalho e nível ínfimo de salário. Tal exército é composto, na Alemanha, principalmente por turcos e poloneses; na França, por árabes e africanos; na Espanha por marroquinos; e assim por diante, sempre com o vizinho rico atraindo o país pobre ao lado.
Mesmo não sendo a intenção inicial, foi importante ter trabalhado parte do tempo da minha viagem, o que me deu condições de acumular um bom dinheiro depois de feita a conversão para a moeda brasileira: o que era miséria lá triplicou por aqui.
Trabalhei em diferentes ramos de atividade nos seis meses em que permaneci do outro lado do Atlântico, tais como: construção civil, serviços no comércio e até como assistente de produção num documentário realizado na Suíça. Darei mais ênfase àqueles em que minha Força de Trabalho foi mais explorada, isto é, menos “bem remunerada”; àqueles em que a avidez por excedente atingiu seu cume.
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Ao trabalhar de assistente de produção em um documentário, posso dizer confortavelmente, não me senti explorado, não senti qualquer Mais Valia que eu tenha produzido sendo-me furtada, isso em vista das condições luxuosas de trabalho que me eram providas: quarto individual em hotel, jantares e almoços em restaurantes chiques, Jornada de Trabalho irregular, chegando a ser de apenas duas horas certo dia. Como efeito colateral, conheci as cinco maiores cidades da Suíça em dez dias carregando fios, lâmpadas, caixas, montando e desmontando sets de entrevistas; e ainda, além de tudo, recebi um salário vultoso. Foi meu primeiro trabalho no Velho Continente; foi um golpe de sorte. Daí para frente, trabalhei também como: entregador-de-propaganda em caixas de correio alheias; repositor e remarcador de preços em uma pequena loja de produtos naturais; auxiliar de construção, vulgarmente nomeado pedreiro, em uma reforma de três semanas de um apartamento na companhia de um alemão e de um polonês.
Entretanto o lugar onde minha força de trabalho foi ao máximo explorada era um Eiscaffe, uma sorveteria e cafeteria, em Kleve, uma cidadezinha perto da divisa da Alemanha com a Holanda. Os Eiscaffes são o lugar, junto com a construção civil, onde é mais fácil se empregar ilegalmente, estes últimos principalmente pelo fato da maioria possuir estrangeiros, grande parte italianos, como proprietários, os quais já conhecem certos esquemas para ocultar imigrantes irregulares.
Os meus chefes foram italianos que começaram como trabalhadores daquele Eiscaffe e conseguiram, depois de anos de exploração, comprar o local e passar a explorar mais-valias alheias; eu os conheci através de um brasileiro que trabalhara lá durante seis anos e assim comprara terrenos, um restaurante, ajudara sua família e fizera sua casa no Brasil. No período em que estive lá, havia como Força de Trabalho duas turcas, uma brasileira, uma romena e um polonês; nenhum alemão. Trabalhei apenas dez dias, pois meu patrão italiano já havia combinado e até pago as passagens para três polonesas, que viriam no começo do mês; só precisavam de mim temporariamente.
A Jornada de Trabalho era intensa e muito extensa, chegávamos a completar quase 14 horas diárias em serviços diferentes, algo como o rodízio de turnos na época estudada por Karl Marx. Pela manhã, precisávamos organizar e limpar a sorveteria, tirar os sorvetes dos freezers, fazer sorvetes, repor os estoques; durante o dia, o principal era o ato de vender, servir as mesas, lavar a louça, fazer cafés, milk shakes, mais sorvetes, lavar a louça novamente; fechávamos à noite com o ritual inverso ao da manhã. Apenas 30 minutos eram destinados ao almoço, e à sua respectiva digestão, e mais 30 minutos para o jantar.
O principal meio de exploração era o aumento da Jornada de Trabalho, a formação da Mais Valia Absoluta: como não éramos registrados, não tínhamos direito ao tempo correto em lei para as refeições e ultrapassávamos em muito o máximo de tempo de trabalho diário comumente aceito no país. Não recebíamos por peça, mas por tempo; recebendo o salário por mês, não havia como calcular o salário por hora, nem muito menos exigir o pagamento de horas-extras. Os Proprietários dos Meios de Produção podiam fazer, e faziam, o que bem entendessem, nos “pedindo” para trabalhar uma hora a mais, almoçar mais cedo; o fato era que trabalhávamos conforme o fluxo de gente: se houvesse cliente até onze horas da noite, devíamos continuar ali de prontidão, sem receber absolutamente nada a mais por isso.

“Antes de tudo, o motivo que impele e o objetivo que determina o processo de produção capitalista é a maior expansão possível do próprio capital, isto é, a maior produção possível de mais valia, portanto, a maior exploração possível da força de trabalho.” MARX, Karl, O Capital, pg. 384


A minha condição de trabalho, individualmente falando, minha jornada de trabalho se iniciava às 8:15 da manhã (às 8:00 eu acordava e tomava um rápido café da manhã), quando eu devia organizar todas as mesas, lavar a louça que à esta altura, com o serviço de limpeza dos outros funcionários, já estava se acumulando, e descer ao porão onde, em uma pequena fábrica, eu assistia a produção dos sorvetes (misturando ingredientes, esvaziando máquinas, enchendo compotas, limpando o chão); por volta do meio-dia, só por meia hora, era possível almoçar e descansar um pouco; durante a tarde minha função continuava indefinida: atendia clientes, servia sorvetes, voltava ao porão para fazê-los, lavava louça (a tarefa mais constante), fazia compras, consertava máquinas, limpava o chão, repunha os estoques; o jantar era servido às 18:00 e já às 18:30 eu era chamado de volta ao trabalho; só depois das 22:00 é que começávamos a recolher as cadeiras, mesas, sorvetes, etc; terminando o trabalho somente às onze da noite, quando, exaustos, subíamos para os quartos, tomávamos banho e ficávamos, todos, conversando em mal alemão, parco italiano ou, no caso da brasileira para comigo, em português, num minúsculo corredor entre os quartos. Obviamente que, esgotados, queríamos dormir, porém esse social, jogar fora essa conversa-furada, era necessário para quem passou o dia inteiro sem fazer outra coisa a não ser seguir ordens, sem sair daquela bendita sorveteria; acabávamos, sempre, só indo dormir por volta das duas da madrugada.
Foi mencionado aqui que “subíamos para os quartos”, sim, um alojamento era destinado aos funcionários, obviamente, já que vinham de outros países, o que minimizava o tempo de deslocamento entre ambiente de trabalho e casa. O mesmo acontecia para os intervalos das refeições, imensos intervalos de trinta minutos, as quais eram servidas no andar acima da sorveteria, e para a qual perdíamos, no máximo, um minuto.
Não creio ser possível calcular realmente o quanto de MV que eu produzi nestes dez dias, mas façamos uma analogia e uma comparação do meu custo, uma máquina produtiva e barata, com o de uma peça genuinamente alemã. Fique-se claro que minha acomodação e alimentação eram pagas por meus patrões. Trabalhei dez dias e recebi duzentos e setenta euros; somando-se essa quantia à, aproximemos, quinze euros diários pelas refeições e mais quinze, avaliando por baixo, pela hospedagem, chega-se ao total de quinhentos e setenta euros por dez dias de trabalho numa jornada diária mínima de doze horas. E se eu fosse um alemão, daqueles de rosto avermelhado pela cerveja da Baviera e do excesso de Sauerkraut – o famoso chucrute - , e me contratassem assinando minha carteira de trabalho? Bem, de entrada deve-se eliminar o pagamento pela moradia, se alemão fosse, eu moraria já numa casa situada em alguma rua com nome de filósofo ou músico do século XIX, e não receberia por isso. A média do salário mínimo na Alemanha, conforme fui informado, fica em torno de quatorze euros por hora, dos quais recebem-se apenas sete limpos, ficando o restante com o governo, que, anos mais tarde, me devolveria graciosamente como aposentadoria. Não tenho informações sobre a existência de vale-transporte ou vale-refeição, o certo é que para o primeiro não se precisaria de comparação, visto que eu não gastava com transporte, e, para o segundo, ser-nos-á permitido, por motivos marxistas, dispensá-lo da conta. Assim, simplificando-se, temos apenas de multiplicar o preço da Força de Trabalho alemã, que é igual a quatorze euros, pelo número de horas diárias trabalhadas, treze na média, e multiplicar este resultado pelos dez dias trabalhados, o que dá a quantia de (14 x 13 x 10 = 1820) mil oitocentos e vinte euros! Delineia-se portanto a Mais Valia Relativa que o Proprietário do Meio de Produção alcançou ao trocar a Mercadoria oferecida por algum alemão Proprietário de Força de Trabalho pela Mercadoria oferecida por um brasileiro; esta é igual à diferença entre o salário do primeiro e o do segundo(1820 – 570 = 1250), ou seja, se fôssemos considerados máquinas, a máquina brasileira realiza o mesmo trabalho que a alemã por um terço do preço; a troca de uma por outra, portanto, poderia ser considerada como aumento de produtividade, ou seja, formação de Mais Valia Relativa (que decorre, ou da diminuição do Tempo Trabalho Necessário do trabalhador pela baixa no preço de sua Subsistência, ocasionada pelo aumento de produtividade, ou simplesmente pelo direto aumento da produtividade).
Há todavia um porém: um trabalhador alemão teria direito à um maior tempo destinado às refeições e teria uma Jornada de Trabalho máxima de seis horas por dia (embora pudesse trabalhar mais sob um título de “horas-extras”, jamais chegaria ao total de treze horas diárias). O que esta afirmação implica na conta realizada anteriormente? Significa que não houve apenas formação de Mais Valia Relativa, mas também, pela extensão da Jornada de Trabalho, obtenção de Mais Valia Absoluta. Excluindo-se da conta a contabilidade das horas-extras, que são por demais relativas, visto que o trabalhador pode realizar um certo dia e duas em outro e ainda nenhuma num terceiro dia, podemos calcular aproximadamente de que forma o Trabalho excedente se dividiria entre Mais Valia Relativa e Absoluta. Fazendo-se o cálculo, eu recebi, por hora, quatro euros e quarenta cents aproximadamente (570/10 = 57 e 57/13 = 4,40), o que resultaria em, multiplicando-se pelas seis horas diárias autorizadas por lei e pelos dez dias trabalhados, duzentos e sessenta e quatro euros (4,40 x 6 x 10 = 264) se eu só trabalhasse o tempo diário permitido por lei. Logo, a Mais Valia Relativa cresce para mil quinhentos e cinqüenta e seis euros (1820 – 264 = 1556)! Com a substituição da nacionalidade do trabalhador, com o emprego ilegal de um imigrante, o capitalista economiza 85,49% com o pagamento da Força de Trabalho pelo tempo normal e ainda realiza Mais Valia Absoluta à vontade pois explora até o máximo o limite físico do imigrante, já que não há limite de horas para o trabalho ilegal.
Seria possível aumentar ainda mais a conta do Trabalho Excedente pois não tínhamos, nós, os funcionários, folga aos domingos, não possuíamos nem mesmo qualquer dia de folga.

“Fica desde logo claro que o trabalhador, durante toda a sua existência, nada mais é que força de trabalho, que todo o seu tempo disponível é, por natureza e por lei, tempo de trabalho, a ser empregado no próprio aumento de capital. Não tem qualquer sentido o tempo para a educação, para o desenvolvimento intelectual, para preencher funções sociais, para o convívio social, para o livre exercício das forças físicas e espirituais, para o descanso dominical, mesmo no país dos santificadores do domingo. Mas, em seu impulso cego, desmedido, em sua voracidade por trabalho excedente, viola o capital os limites extremos, físicos e morais, da jornada de trabalho. Usurpa o tempo que deve pertencer ao crescimento, ao desenvolvimento e à saúde do corpo. Rouba o tempo necessário para se respirar o ar puro e absorver a luz do sol. Comprime o tempo destinado às refeições para incorporá-lo, sempre que possível, ao próprio processo de produção, fazendo o trabalhador ingerir os alimentos como a caldeira consome carvão, e a maquinaria, graxa e óleo, enfim, como se fosse mero meio de produção. O Sono normal necessário para restaurar, renovar, refazer as forças físicas reduz o capitalista a tantas horas de torpor estritamente necessárias para reanimar um organismo absolutamente esgotado.” MARX, Karl, O Capital, pág 306

O parágrafo acima é o que por certo melhor descreve as condições de trabalho que encontrei na fatídica sorveteria italiana. Parece brincadeira, mas desconhecíamos sol e chuva, o dia inteiro entre paredes, só reconhecíamos a existência de Amon quando do recolher e do arrumar as mesas e cadeiras externas. Não me foi possível sequer fazer um pequeno tour pela suposta charmosa cidadezinha alemã, não houve tempo nem oportunidade de sair do alcance, das imediações, da sorveteria. Tudo era organizado de modo a maximizar nosso tempo, nossa transição entre as diferentes funções, nossa produtividade. A exigência era enorme chegando a ponto de a empregada romena, já talvez fora de sua idade mais produtiva, chorar e resmungar escondida para não demonstrar aos patrões que poderia estar sendo menos eficiente. Gostaram de mim lá, por ser jovem, saudável, falar a língua, e não reclamar; tratei o tempo em que trabalhei com eles como uma grande experiência, mais social que propriamente de trabalho, foi um grande aprendizado; pelo menos comíamos sorvete à vontade: “Só faltava proibirem isso pros escravos aqui, né?!” exclamava Diolinda, a brasileira que trabalhava lá de doméstica e talvez o motivo maior de eu ter agüentado trabalhar no local, as comidas baianas no almoço e no jantar eram o ponto alto do dia.
Ainda permaneci mais dois dias, quando as contratadas polonesas chegaram: no segundo dia já estavam chorando e reclamando das pernas, elas não tinham escolha e deviam trabalhar com a expectativa de exercer aquele ofício por no mínimo mais dois meses. Eu trabalhei tranqüilo, levei na brincadeira tudo aquilo, voltaria a trabalhar com eles, mas não sei se suportaria mais de um mês naquele ritmo; por condições físicas não haveria problemas, a dificuldades seriam morais; não havia tempo para nada além de trabalho: banho, por exemplo, só depois da meia-noite se ainda fosse possível permanecer de pé.



Conclusão

A expectativa dos trabalhadores imigrantes vem diminuindo. No espírito de “se não podes enfrentar o inimigo, junte-se a ele”, a Europa vem expandindo sua união em direção justamente aos países do leste que lhe exportam indevidamente força de trabalho. Na incapacidade de fiscalizar essa imigração de trabalhadores, a União Européia aceitou, em primeiro de maio de 2004, mais de dez novos países para, entre outros motivos, legalizar o trabalho destes imigrantes; não evita sua vinda, que causa transtorno para os níveis de desemprego dos países alvo (o que é o motivo do crescente movimento xenofóbico percebido nessas nações), mas, pelo menos, os viabiliza como trabalhadores legais e, conseqüentemente, pagadores de impostos. Outro resultado que pode vir a ser produtivo, para a mais forte das partes, é a entrada do Euro nestas economias mais frágeis o que encarece seus produtos, seu custo de vida, e diminui o “grande lucro” que os ex-trabalhadores ilegais obtinham ao trabalhar no exterior. Nas palavras de Robert, trabalhador polonês com o qual trabalhei em uma reforma de uma casa, ao ser perguntado se gostava de seu país ter sido incluído na EU:

“De jeito nenhum! Agora tudo vai piorar, os preços na minha cidade já subiram consideravelmente por causa dessa expectativa e os salários continuam, e vão continuar, no mesmo patamar, tanto lá como aqui na Alemanha. Salário para gente como nós é sempre o mínimo possível. Antes eu trabalhava aqui por três, quatro meses, e me mantia tranqüilo, sem precisar de nenhum emprego, pelo resto do ano, no meu país. Agora sem chance, jetzt keine chance...”
*artigo para a aula de Economia Marxista, em 2004