domingo, maio 15, 2005

Noites ou noivos
Noite era e seria nessa noite. Juliano agarrava com suas unhas as mangas molhadas do agasalho preto, presente de Ana em passado recente; ele, ainda na porta de casa, olhava o frio noturno com o desprezo ardente de quem ama, de quem define um rumo quando inexistem alternativas ou escolhas vivas.
Nada não se esconda: ele a pedirá em noivado - o próprio título denuncia -, ele até mesmo já carrega os anéis nos bolsos. Os anéis estão frios, mas é do suor gelado das mãos de Juliano. Ode à ansiedade; a distância até o restaurante seria longa, mais longa até que o gelo umidecido que escorria por seus braços, que chegava até seus dedos apertados nas mangas do agasalho preto presenteado por Ana. Ano a ano Ana lhe dava mimos, dava-lhe sinais ou sinos de seus sentimentos; os últimos talvez os tenham definitivamente unido e agora os levavam, a ela e a Juliano, à esta última atitude desesperada.
No escuro, o som dos passos passa despercebido somente para aqueles que não dão a devida importância à poesia dos solos, ao ritmo das solas. Ritmo hipnotizante que num solo tocava as lembranças de uma história de amor e retocava uma estória imperfeita. Há quatro anos era março, podendo ter sido novembro, Juliano reencontrara Ana que reencontrara aquele Juliano que uma vez amara. Ambos, sem palavras, tinham muito a dizer e declararam ser o beijo o texto ideal do coração.
Noite de padaria, de suspiros e sonhos: reatavam cada um com seu destino, que de um era o do outro. O começo de uma intimidade iniciada não agora no fim, porém antes, muito antes; nos tempos idos da primeira escola, quando não se falavam pois eram o oposto de uma mesma moeda e, justamente por isto, virados para lados diferentes. Ana e Juliano eram os mais da turma: ela, a mais bonita, a mais charmosa, a mais inteligente, a mais estudiosa; ele, o mais ardiloso, o mais invejado, o mais exibido, o mais odiado. Não que o odiasse, mas ela não gostava dele; não que não gostasse dela, mas ela não atraía sua atenção.
No fim, foi exatamente por isso que aquele março surpreendeu tanto um quanto outro, pois seus olhares haviam mudado, eram agora ternos, olhares que acariciam e que declamam poesias, a moeda virara do avesso e as faces se atraíam, o mundo externo desmoronara (ou, se continuava de pé, pelo menos sua importância ruíra).
Naquela rua, a brisa gelada abria caminho para as memórias de Juliano, deixava de atormentá-lo com sentidos superficiais do corpo, deixando os sentimentos da alma almejarem o controle da rota, sentido sul da rua, iluminada pela calma da lua e pelo som do luar.
Nisso tocou os bolsos com o coração em pânico, ufa!, estavam ali os anéis. Indeciso e contraditório ficou mais nervoso. Apertou o passo com medo de parar, e cada vez com mais temor de chegar ao destino. Como o restaurante se aproximasse, suas luzes já o tocavam, atravessou a rua - estava a ponto de atravessar o limite de sua liberdade, de seus sonhos individuais. Sim, ele irá entregar o anel no final, isto porém não o impede de ter suas incertezas e seus momentos de hesitação no entretanto.
Naquilo que pareceu uma eternidade, lembrou de todos os seus encontros com Ana, um a um, ali mesmo na calçada caçava ele as felicidades que o levavam até aquele penhasco do comprometimento, pulava do conforto do ser livre para o espaço desconhecido de uma escolha, daquelas escolhas que decidem o itinerário do futuro. Mas, afinal, isto é ser livre, não? Poder tomar quantas decisões que quiser... e ele queria! Atravessou a rua decidido, entrou no restaurante e sorriu.
Nada mais o impediria, já contavam cinco anos de namoro e se amavam - a adrenalina todavia o sufocou quando ela lhe respondeu o sorriso com aquele rosto tão encantador. Nádia estava linda! Ela era perfeita para ser mãe de seus filhos, pensava Juliano mexendo nos anéis dentro do bolso, como que querendo desenroscá-los, como se pudessem estar enroscados. Ela arrumava seus cabelos que pareciam sempre insatisfeitos com o lado em que estavam.
Nenhum inconveniente; tudo correu bem e, como já mencionado, com um longo e belo discurso apoiado nos sentimentos mais profundos enraizados em alguém que ama, Juliano entregou o anel para Nádia com os olhos molhados e brilhantes, espelhando assim a face dela, a face da pessoa amada. Nádia observava o esperado anel em seu dedo, Juliano pensava em seus desesperados dedos na manga do agasalho preto. Estava feito, dali sairiam para comemorar os frutos do que há anos cultivavam, festejariam por dias com a excitação do acontecimento, transbordariam taças e secariam gelos. O programa era uma viagem? Que não tivesse destino, que não tivesse paradas, seria o fluxo entre os dois que trariam o mundo para onde estavam, não precisariam de mais combustível que um sussurro ao pé do ouvido, que um gemido no odor das mãos...
"Não!" Disse Nádia, olhando aquele mesmo agasalho preto que não fora presente seu, olhando para aquele homem que nunca lhe pertencera. Por alguma razão ela o compreendera, talvez porque o conhecia; um dejà-vu de pensamento ocorreu em Juliano, que imaginara esta reação de Nádia milhares de vezes durante aquela semana, talvez porque também a conhecia.
Num misto de constrangimento/realização/insuficiência respiratória, Juliano se levantou e abraçou sua ex-futura mãe de seus filhos, seu ex-futuro. Ela até que se comportou bem, sem explicações ou sem exigências aceitou os beijos e abraços de Juliano e saiu porta afora, impassível, digna, superior. Ele voltou a se sentar, contraditório ou não, estava mais calmo; largara o apoio das mangas do agasalho.
Ninguém o olhava, e ele tinha em si todos os olhos do mundo; e o mundo voltara a lhe pertencer, seu amanhã não estava mais marcado, ele não tinha mais Nádia, nada mais o separaria de Ana, que fora quem lhe dera aquele agasalho preto, que fora quem lhe devolvera a infância e nunca lhe tomaria o futuro. Nádia, que o amou ao longo dos longos últimos cinco anos, Nádia levou a aliança, mas deixou a liberdade com Juliano, deixou a incerteza, o indefinido, a beleza de um talvez. Ele, talvez, não teria mais a mãe de seus filhos; e tinha mais que isso, tinha a Ana, tinha seu fôlego de volta; ele ficou com a possibilidade, com o que não se sabe, com frio; ele ficou no restaurante com sua vida ironicamente restaurada.
Naturalmente, ele ficou para pagar a conta.