quarta-feira, janeiro 12, 2005

Porque estivesse gelado

Porque seus pés estivessem gelados, não pensou em movê-los; pelo menos necessidade não havia já que ainda permaneciam fechados seus olhos. O conforto de não abri-los, a comodidade de esperar que o tirassem dali dançava diante dele na escuridão e ainda lhe fazia companhia. Dança esta, porém, um pouco, ou melhor, demasiadamente agitada e violenta visto que lhe dava pancadas na cabeça, nos ombros, nos pés. Sim, dança esta que pulsava em seu interior afastando sua atenção do sistema respiratório, não sabia que respirava, tinha dúvidas se respirava. Da negritude ao vermelho, o que poderia lhe ter lembrado o título duma obra de Stendhal, se a tivesse lido; do breu ao rubro, de um ao outro, do segundo ao primeiro; tal roleta bicolor lhe atormentava caso abrisse ou fechasse seus olhos. Entre o preto da proteção das pálpebras ou o vibrante vermelho do seu vestuário, escolheu o segundo, pela curiosidade, mas com certa hesitação. Daquela mancha escarlate correu os olhos para seus pés sem os alcançar e finalmente aí desapoiou a cabeça do onde ela, teria dito ele às testemunhas - se estas houvesse - , parecia ter ficado encostada durante todos os dez anos do seu casamento. Vã, e imprudente, tentativa sem sucesso: seus pés escondidos atrás dum metal, o qual ele não tinha idéia nenhuma de onde saíra; os braços esticados ao longo do pescoço e da cabeça, esta apoiada no volante; e facas no lugar de costelas, só poderia ser isso para explicar aquelas dores indescritíveis que sentia sempre que tentava virar, desdobrar ou apenas erguer um pouco suas costas. Volante! Sim, se um volante lhe servia de travesseiro ao contrário – pois sustentava a sua testa, não sua nuca -, então estava num carro; o que explicava aquele tronco de metal que ocultava seus pés. E se aquilo era um carro, e sua testa abusava sexualmente do volante, então as manchas vermelhas na sua calça...
Som, havia um som forte e agudo e contínuo também, mas isso não era mistério, ele reconhecia a buzina do seu automóvel, tantas vezes movida contra barbeiros e estressadinhos do trânsito. Ocorreu-lhe que, talvez, ele é que os fosse. Bem, fosse o que fosse, esperaria resgate mesmo se pudesse se livrar daquela situação sozinho; o que não era o caso pois sentia seus braços pelo roçar de suas orelhas, só sentia que eles ainda o acompanhavam, não percebia se o obedeceriam no instante que desejasse – ou no instante em que pudesse desejar. A dor já se cansara de atormentá-lo, a dor física pelo menos; o remorso é que o comprimia, por todos os lados, inclusive o interno; inclusive, sim, o interno naturalmente. As luzes o perturbavam um mínimo, o som de serra cortando aço, as faíscas decorrentes deste evento, as risadas comprimidas que ouvia de homens tão acostumados a tragédias desse tipo - à rotina dos acidentes automobilísticos -, um choro desesperado, alguém chorava!, nada o afastava do nada interno que se tornara seu corpo: falta de movimentos, carência de reflexões e o incômodo daquela dor na alma, só, isolada, no meio de carnes dilaceradas e ossos quebrados, e, como acontecera com alguns, moídos.
Com o branco veio o alívio da água que desentope a garganta de alguém sedento, com o branco do teto do seu quarto, que ele reconheceu rapidamente ao abrir os olhos. Fora um sonho muito louco!, diria ele para seus amigos, tentando passar a impressão de extrema desenvoltura no tratamento com o terrível pesadelo que tivera. Insistiria muito em comprovar seu ponto, caso pudesse; caso aquele teto branco fosse o teto azul-claro do seu quarto; caso suas duas pernas não estivessem, teoricamente, pois não podia vê-las devido à paralisia de sua cabeça e de seus braços, caso suas pernas não estivessem engessadas, caso aquela fosse a sua cama. Caso seus pés não estivessem tão absurdamente gelados.
Lefratel