segunda-feira, março 05, 2007

A HISTÓRIA DE TERTULIANO JACOMEL

Tertuliano Jacomel morreu jovem e, justo por isso, morreu cedo. Seu pai, ao contrário, durou quase quatro vezes mais; viveu até os noventa e cinco. Foram noventa e cinco anos aborrecidos com a morosidade da vida na fazenda, ou da falta de. Com cinco fazendas acumuladas em oitenta anos de trabalho árduo na roça, o pai de Tertuliano cultivou seis mulheres, todas as seis ignoravam a existência de outra meia dúzia.
A família Jacomel tornou-se fértil, portanto, em descendentes; respondiam por cinquenta porcento do produto interno bruto da cidade, que via como uma reunião de família a sua câmara de vereadores, todos - menos um - assinavam o mesmo sobrenome (o único sobrenome Silva da lista não foi reeleito e ninguém se importou). O trabalho, ali, não exigia muito; apenas questões de divisão de verba e ordenação da preferência de licitações que animavam um pouco o ambiente. Salvo isso, calmaria.
A mãe de Tertuliano, Dona Rosa, sempre muito atenciosa, uma vez o perdeu no parque. Reuniu seus outros nove filhos e os contou, de cá pra lá e de lá pra cá, nove. Como não possuía dez crianças, tranquilizou-se com sua matemática; esqueceu, porém, que um deles era um primo que viera junto na excursão. Soube-se do paradeiro de Tertuliano através do seu grande amigo, e também primo, Aníbal Lucas Jacomel, que o encontrou na fila do banheiro das mulheres e ficou a vida inteira sem resposta sobre o que seu amigo estava fazendo ali, já que Tertuliano ainda era muito novo para pensar o que Aníbal Lucas pensava que ele não pensava. Nada grave, porém.
A cidade, Idiópolis, em Minas Gerais, prosperara vigorosamente até o domínio do clã Jacomel. Já fazia oitenta anos de história quando da chegada do primeiro descobridor e dali em diante, como uma esponja que seca e passa a ter seu tamanho sustentado virtualmente por ar, Idiópolis estagnou. Seus duzentos mil habitantes viram-se dominados por duzentos novos cargos públicos comissionados, criados pelos duzentos primos Jacomel tão logo atingiam idades economicamente ativas, que, para membros da família, começava aos quatorze anos.
O auge se deu quando o pai de Tertuliano completou oitenta anos, pois começou a exportar filhos e sobrinhos para as grandes metrópoles em face da saturação do mercado de trabalho em Idiópolis e arredores. A maior felicidade do velho fora o nascimento das irmãs de Tertuliano, Gilda e Cíntia, gêmeas desde os primeiros dias da fecundação. Vieram ao mundo iguais e, iguaizinhas ao resto da família, desenvolveram aptidões naturais para cargos públicos; foram Prefeita e vice, por duas vezes, de Idiópolis. Realizaram grandes obras para o longo prazo, como por exemplo: o chafariz, construído no inverno mas projetado para refrescar os transeuntes e turistas no verão (ainda não havia muitos turistas, é verdade, era um projeto de mais longo prazo ainda, para o próximo inverno realizar-se-ia uma feira de cachecóis, de todos os tipos e tamanhos e cores e texturas).
Sabe-se que Tertuliano foi músico, ninguém porém se lembra de que instrumento tocava. Morreu cedo, contudo, antes mesmo da inauguração da IdioTV, num sábado ensolarado, regado a muito vinho e batata frita. O primeiro programa a ir ao ar seria, é claro, o noticiário local; com dois colunistas jacomelianos já famosos na cidade desde a época do rádio: Cássio Jacomel Jr. e Irene Alves Idem.
No aniversário de quinze anos do canal, quinze anos depois daquele sábado, em uma festa da família, constatou-se que ainda brilhavam, doladodecá das câmeras, os Jacoméis.
As histórias, às vezes, salvam aqueles que não fazem parte dela, dando-lhes máscaras obscuras de honestidade, mas nunca falham em incriminar os que por ela são engolidos. Tertuliano morreu cedo, coitado. Teria vivido bem.
Uma monotonia ao som de circo ditava o ritmo de Idiópolis, que assim que ganhava o pão, fechava os olhos para a falta de manteiga. O bolor viciado tinha o doce do sufixo enganador da família dominante, e todos dali comiam.
Dona Rosa, na missa dos vinte anos da morte de seu único filho que não vingara, chorou apenas em virtude do grão de areia que lhe dificultava a visão da turba de familiares comissionados, todos reunidos em virtude do feriado municipal, criado vinte anos antes. Dona Rosa ainda se incomodava com o cisco quando, na porta da igreja, apareceu Aníbal Lucas, padre e atrasado, correndo para começar o sermão. Demorasse um pouco mais e seu irmão José, padre e pontual, tomar-lhe-ia o lugar.
Prolongo-me, contudo, demasiadamente na história da família e da cidade de Tertuliano, descuidando do objeto de minhas pesquisas em Idiópolis, onde morei os últimos quatro meses. Voltei mais cedo que o programado, foi difícil suportar a mornidão do imutável, sufoquei. As ruas lá têm nomes de políticos, e os políticos têm Jacomel nos nomes, e, nas ruas, quem não é político anda a pé. Infundados são os rumores do fortalecimento de uma oposição, pois esta já existe - mas com os mesmos itens da cesta básica, reformulados apenas, arrecadando os descontentes. Uma oposição à oposição se oporia a quê?
Minha pesquisa fluiu pouco, obtive os seguintes resultados: Tertuliano parece que foi músico e parece que morreu com vinte anos, com tolerância de dois, para mais ou para menos - pois seu pai não sabia exato se ele nascera antes ou depois das gêmeas. Das gêmeas, porém, sabia que Cíntia nascera antes, o que não tinha relevância para meus estudos. Interessei-me pela história de Tertuliano por achar louvável sua abdicação ao fácil, mas meu porquê não interessa, já que o sujeito não possuiu verbos transitivos. Tertuliano, coitado, morreu cedo.
Talvez, contudo, o menor dos coitados.