quarta-feira, setembro 14, 2005

Menos inocente que quem?
. O bixo estava preso entre o fim da vassoura e o começo da parede, encurralado, olhando para mim - tinha olhos pequenos, inteiramente pretos, em qualquer lugar que eu estivesse pareceria que me observavam. Com suas inofensivas patas ele agarrava a palha plastificada do instrumento que o sufocava - na falta de objeto mais adequado, eu tentava matá-lo tirando-lhe a chance de respirar -, e um cheiro ruim de morte se espalhou pelo ar; fedor de morte normal não deve ser tão azedo. Ele soltava esse cheiro como que para dar-me a chance de ver a injustiça que eu cometia.
Ele não tivera medo de mim, e nem agora o tinha (se pudesse, acho que apenas moveria a cabeça com desprezo, daqueles que dizem tsc tsc tsc). Nem correra! ELE NEM CORRERA!
Sim, correra, tentara fugir apenas quando o acertei com a vassoura pela primeira vez. Agora, preso, abria a boca pedindo perdão por existir e por não ter feito nada contra mim, pedia isso na língua muda que aprendera com a natureza, implorava com granhidos sabendo que eu não entendia seu linguajar, mas compreendia seu apelo. À esta altura eu já queria voltar atrás, estava arrependido de tamanha violência (ele não me roubara nada, não chegara perto de mim, não... que motivo tinha eu para estrangulá-lo? Qual sua desvantagem em relação à qualquer outro animal que segue seus instintos? Por que não mato os cachorros e gatos que vêm revirar meu lixo? Por que só contra ele?).
Prendi o cabo da vassoura em uma gaveta e alcancei o rodo. Peguei a vassoura novamente. Eu tenho um cachorro e tive de ensiná-lo a não fazer suas necessidades dentro de casa (nem no jardim da frente), a não avançar na minha comida, a não... Foi porque O escolhi que dei-lhe essa chance? Então, quem eu escolho como "bom", como parte da família, tem mais direitos que o resto? Nem mesmo mais direitos, não é nem essa a questão, o foco é: posso matar apenas porque não o escolhi como amigo? Enfiei o cabo do rodo na goela dele, ele mordeu. Dei uma leve pancada que chocou sua cabeça contra a parede. Tentei esmagá-la, mas escorregava, e cada vez que escorregava meu arrependimento aumentava. Por que não o espantei apenas? POR QUE NÃO ESPANTEI APENAS? Ele soltava aquele cheiro como que para dar-me a chance de ver a injustiça que eu cometia. Eu tinha uma vida nas mãos e a morte na cabeça.
Meu cachorro por vezes também não me obedece, e nesse dia estava até mais sujo que aquele agonizante rato sem sorte. Ratos transmitem doenças - aquele estava limpinho, era pequenino, mas nunca dá pra confiar né? Ele poderia me matar, não? Mesmo que nunca fosse sua intenção né, ele poderia me deixar gravemente doente, então eu tinha dever e direito de aniquilá-lo. Na duvida se ele não me faria bem, a certeza de que jamais me faria mal.
ERA PEQUENO O COITADO. Quando me aproximei ele nem se importou, achou que eu era amigo, ele confiava em mim - eu o traí. EU O TRAÍ, e o coitado nem era dos grandes.
Uma porretada na cabeça; e daquela boca arregaçada uma mancha vermelha foi surgindo, vindo lá do fundo de sua alma, pudesse chorar para demonstrar sua inocência, ele o faria. Mas o choro é convenção humana talvez.
Não tinha mais volta, o sangue escorria pela boca, o vermelho delineava seus pequenos dentes inofensivos, continuei acertando-o na cabeça (por vezes na própria vassoura) com o cabo do rodo, este também adquirindo um tom avermelhado. Afrouxei a força para ele tentar uma fuga, para que outros alvos aparecessem e mais facilmente (MAIS FACILMENTE) eu pudesse acertá-lo. Ele berrava, suas patinhas dianteiras espalmadas em minha direção, levantadas, sinal universal de "paz, estou desarmado", clamavam pela vida, ou para que eu acelerasse com a imposição da morte. IMPOSIÇÃO DA MORTE. Ele se retorcia ali, preso, imobilizado, sem ter tido direito à defesa no julgamento de sua não-culpa, onde nem o executor da pena sabia qual argumento o sustentaria.
Eu me arrependia, porém era tarde. Devia ter me arrependido antes de acertá-lo pela primeira vez, antes de acertá-lo pela segunda vez (talvez até depois, mas antes da terceira).
A lei do mais forte e covarde venceu, arrastei o corpo para dentro de um saco plástico, e no caminho ele deixou umas letras de sangue escritas no chão, parecia apenas um rastro, marca de alguém sendo arrastado, mas tenho certeza que algo estava escrito ali. Talvez perdão. Não o pedido, mas o oferecimento.
Certamente, por ser irracional, ele perdoou a falta de razão do meu ato. Sei disso, pois ele tem vindo constantemente me falar isso de noite, quando durmo.